
Em seu balanço parcial sobre visita feita ao Brasil, o relator da ONU, Bernard Duhaime, reforçou que violações aos direitos humanos praticadas ainda hoje por agentes do Estado são, em boa medida, uma herança da ditadura e da impunidade em relação aos crimes do regime. Ele também apontou que entre as populações alvo da violência institucional, naquele e neste momento, estão os negros, os indígenas e os camponeses.
Nesta segunda-feira (7), Duhaime — que responde pela área de Promoção da Verdade, Justiça, Reparação e Garantias de Não Repetição —, divulgou um relatório preliminar feito a partir das visitas e encontros que manteve com autoridades e representantes de movimentos sociais brasileiros desde o dia 31 de março. O documento final, com suas análises e recomendações, será apresentado ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em setembro.
“A implementação insuficiente de políticas para lidar com as consequências da ditadura infelizmente levou a ataques recorrentes à democracia, aos direitos humanos e ao estado de direito, como evidenciado pela brutalidade policial de hoje (particularmente a Polícia Militar) contra grupos marginalizados e pela mais recente suposta tentativa de golpe de janeiro de 2023”, salientou.
Violência policial
Em seu relatório, Duhaime critica a persistência da violência do Estado pelas mãos das forças policiais e armadas, observando que “execuções sumárias, tortura e detenções arbitrárias continuam a permear a sociedade brasileira em taxas alarmantes, afetando particularmente povos indígenas, camponeses e pessoas afrodescendentes. A responsabilização por tais crimes raramente é perseguida, o que encoraja e perpetua ainda mais tais práticas”.
Ele apontou que sua principal preocupação está no fato de ter recebido relatos dando conta de que as ações violentas de agentes do Estado contra essas populações são, muitas vezes, consentidas ou ignoradas por parte das autoridades.
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Além de outros fatores históricos, como a escravidão, o relator vê nesse tipo de comportamento uma herança institucional das arbitrariedades cometidas por agentes públicos no período autoritário. “A reforma das instituições envolvidas em violações de direitos humanos durante a ditadura é um princípio crucial da justiça de transição que visa prevenir a recorrência da violência. No entanto, tais processos não foram priorizados no período de transição do Brasil”, argumenta.
Mesmo considerando a autonomia dos estados para as questões relativas à segurança pública, Durhaime diz que esses entes federativos, assim como toda a nação brasileira, “são responsáveis por adotar medidas para garantir que a operação das agências policiais estejam em total conformidade com os padrões internacionais sobre o uso da força, e que qualquer violação seja adequadamente investigada, processada e sancionada”.
No relatório, ele salienta não ter recebido “informações suficientes sobre as reformas implementadas no setor de segurança e nas forças armadas após a ditadura para transformá-las em instituições que estejam totalmente em conformidade com o estado de direito”.
Além disso, afirmou não ter sido informado de práticas em vigor, na segurança ou nas Forças Armadas, “para vetar funcionários acusados de terem cometido violações de direitos humanos durante a ditadura ou depois”.
Ao concluir esse tópico, o relator pede às autoridades federais e estaduais o alinhamento de todas as forças de segurança com os padrões internacionais, o treinamento em direitos humanos, o ensino de história sobre abusos passados, assim como a efetiva fiscalização sobre quaisquer oficiais envolvidos em violações.
Indígenas, camponeses e afrodescendentes
Outro ponto do relatório é dedicado à forma como os arbítrios da ditadura militar alcançaram especificamente os indígenas, camponeses e afrodescendentes, bem como à falta de investigação e punição desses crimes por parte do Estado.
“A CEMDP (Comissão Especial de Mortes e Desaparecidos Políticos) e a CNV (Comissão Nacional da Verdade) se concentraram, principalmente, em crimes cometidos por agências de segurança contra indivíduos por causa de suas atividades políticas, em vez de abordar todos os crimes patrocinados pelo Estado, independentemente de seus motivos ou das atividades das vítimas”, argumenta.
É o caso, completa, “da maioria dos abusos cometidos pelo Estado contra povos e comunidades indígenas não envolvidos na resistência política contra o regime ditatorial”.
Para ele, as 8,3 mil vítimas da repressão às quais a CNV alude, podem ser “apenas a ponta do iceberg”. Ele destaca que além de alegações críveis de inúmeros massacres, recebeu informações sobre deslocamentos em massa de comunidades indígenas, grilagem de terras, tortura, desaparecimentos forçados de crianças e trabalho forçado, “cometidos por agentes do Estado ou não estatais com a colaboração ou conluio de autoridades do Estado”.
Muitas dessas graves violações de direitos humanos, explicou, “ocorreram no contexto da expansão das fronteiras agrícolas, de grandes obras de infraestrutura, como estradas e barragens, ou como resultado de indústrias extrativistas”.
Além disso, o relatório aponta que a CNV fez referência a mais de mil casos de crimes cometidos por agentes da ditadura contra camponeses que lutavam por reforma agrária. “Recebi informações confiáveis indicando que as autoridades do Estado realizaram importantes operações de repressão maciça contra os camponeses neste período. Pouquíssimos esforços foram realizados para estabelecer a verdade sobre os abusos cometidos contra esses setores da população, inclusive contra os apoiadores da reforma agrária nas áreas rurais”, destaca.
Da mesma forma, escreve, “muito pouco foi estabelecido pela CNV sobre a violência do Estado cometida durante a ditadura contra pessoas afrodescendentes, suas comunidades em áreas rurais e nas favelas do entorno ou em grandes áreas urbanas”.
O relator alega ter recebido “relatos críveis de operações repressivas, incluindo prisões arbitrárias, desaparecimentos forçados, execuções sumárias e tortura, dirigidas contra esse setor da população por autoridades do Estado durante a ditadura”.
Ao concluir o documento, Duhaime diz que “os danos produzidos por essas práticas têm sido vivenciados em todo o território do país e sentidos ao longo de sucessivas gerações. Esse continuum de violência é um indicador da falta de abordagens abrangentes para lidar com graves violações de direitos humanos que englobem medidas de busca da verdade, justiça, reparação, memorialização e garantias de não repetição”.
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