A Evocação nº 1 e a língua portuguesa

Os jornais publicam que o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, inaugurou uma exposição sobre a fala e os sotaques brasileiros. Daqui de Olinda, eu me sinto presente. Muito bem, não vi e já gostei. Explico a seguir por quê.      

No texto “O frevo que se canta hoje no Recife” Urariano Mota: O frevo que se canta hoje no Recife – Vermelho narrei num trecho: 

“– A gravação original da Evocação nº 1 não é assim.

O rapaz ficou atônito. Que coisa mais chata é esse cara vir dizer que estão cantando mal Nelson Ferreira. Mas ele foi salvo por uma senhora, que a tudo ouvia e, mesmo sem ser chamada, achou por bem intervir. Ela me mostrou o celular onde estava a letra da Evocação no trecho “Felinto, Pedro Salgado….”. E me disse:

– Está vendo? É assim que se escreve: Fê-lin-tô.

Toma, além de me ver como um homem sem memória, ela me transformou num analfabeto. Eu lhe respondi:

– É assim que a senhora lê? Fê-lin-tô?

– Sim – E me fitou de cima a baixo, indignada, como a me responder “se o senhor não sabe ler, o problema é seu”. Mas veio mais suave, apesar de autoritária:

– Eu sou professora de português!

– Então a senhora sabe que as palavras não se leem como se escrevem.

– É? Saiba que português não é inglês. É diferente: aqui a gente lê como se escreve”.

Eu me lembrei disso hoje ao comentar num Zap:

“Eu não quero aperriar. Ou como está no dicionário: aperrear”. 

Observem que toda a gente fala “aperriar, aperriado” em Pernambuco. Melhor prova não há que também no português nem sempre se fala como se escreve. A falsa impressão de que são iguais escrita e fala vem do costume. Mas no Recife ninguém fala “bô-nco”. Ou “bó-nco”. (Lembrança do Mestre Arlindo Albuquerque no Colégio Professor Alfredo Freyre em Água Fria).

Já registramos semelhantes mudanças no Dicionário Amoroso do Recife, onde escrevemos

“É histórico, desde a mais tenra infância, que a avenida Beberibe sempre tenha sido chamada de Bibiribe, ainda que se escrevesse e se escreva Beberibe. Há um extermínio das falas locais e da região na voz dos repórteres e apresentadores do rádio e tevê. Os falares diversos, certos/errados aos quais Manuel Bandeira já se referia no verso “Vinha da boca do povo na língua errada do povo/Língua certa do povo”, ganha aqui um status de anulação da identidade, em que os apresentadores nativos se envergonham da própria fala.

Olinda, que a ministra Luciana Santos e todo olindense chamam de Ó-linda, nos telejornais virou Ô-linda. Diabo, falar Ó-linda é histórico, desde Duarte Coelho. Coisa mais bela não há que a juventude gritando no carnaval “Ó-linda, quero cantar a ti esta canção”. Já Ô-linda é de uma língua artificial, que nem é do sudeste nem, muito menos, do Nordeste do Brasil. É outra coisa, um ridículo sem fim,

O tão natural Pernambuco, que dizemos Pér-nambuco, se pronuncia agora como Pêr-nambuco.  E Petrolina, que chamamos Pé-tró-lina, uma cidade de referência do desenvolvimento local, virou outra coisa: Pê-trô-lina. E mais este “Nóbel” da ortoépia televisiva: de tal maneira mudaram e mudam até os nomes das cidades nordestinas, que, acreditem, amigos, eu vi: sabedores que são da tendência regional de transformar o “o” em “u”, um repórter rebatizou a cidade de Juazeiro na Bahia. Virou JÔ-azeiro! O que tem lá a sua lógica: se o povo fala jUazeiro, só podia mesmo ser Jô-azeiro.            

Mas por que tal mudança grassou sem graça até no frevo cantado hoje no Recife? Seria uma evolução natural da língua, que virou a nova prosódia pernambucana? Na verdade, os cantores dos frevos de bloco reproduzem um modelo de fala que julgam culta, educada. É constrangedor ouvir, ver blocos de carnaval do Recife submissos à prosódia dos apresentadores de televisão. Cantam Nelson Ferreira traduzido para um modelo de locução que vem de fora. Nada mais antipernambucano, violentador da história da cidade.

A nossa elite não sabe, despreza: a fala popular é a própria língua da história. A população fala a língua que guarda um fio de continuidade entre a identidade de um lugar e a civilização. Os professores deviam gravar a fala do povo nas feiras, nos mercados públicos. Aí aprenderiam que Felinto sempre foi Filinto, jamais Fê-lin-tô. Pelo menos no Recife.

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