A evolução do diagnóstico de Doença Espiritual, Transe e Possessão: CID-10 e CID-11

Nos últimos anos, houve uma reformulação importante na abordagem dos transtornos dissociativos e fenômenos como transe e possessão na Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS), especialmente com a transição do CID-10 para o CID-11. O CID-10, na versão anterior da Classificação Internacional de Doenças da OMS, incluía os fenômenos de transe e possessão sob o código F44.3.

Esta classificação tratava os estados de transe e possessão como transtornos dissociativos, uma categoria que descrevia episódios de perda temporária da identidade e senso de agência, frequentemente acompanhados pela manifestação de outra identidade. No entanto, essa abordagem era amplamente criticada, principalmente por não considerar adequadamente o contexto cultural e espiritual, o que levava à patologização de fenômenos que, em muitas culturas e religiões, são vistos como experiências espirituais legítimas. Tais experiências eram, portanto, tratadas como condições patológicas, com tratamentos psiquiátricos que nem sempre se alinhavam com as práticas culturais ou espirituais dos indivíduos.

A transição para o CID-11 trouxe uma reclassificação significativa, refletindo uma abordagem mais abrangente e culturalmente sensível em relação aos estados de transe e possessão. Ao contrário do CID-10, que dava um tratamento mais rígido a essas experiências espirituais, o CID-11 abandonou o código específico para “transe espiritual e possessão”, passando a considerar essas experiências dentro de uma categoria mais ampla de transtornos dissociativos, mas sem a ênfase exclusiva nos fenômenos espirituais.

O CID-11 não faz mais uma associação automática entre transe e possessão com transtornos mentais, reconhecendo agora que tais fenômenos podem ocorrer dentro de contextos culturais específicos, nos quais são compreendidos como manifestações legítimas de práticas espirituais ou religiosas. Em outras palavras, o CID-11 se preocupa em diferenciar experiências espirituais legítimas de transtornos psiquiátricos reais, tomando cuidado para não patologizar aquelas vivências que não resultam em sofrimento significativo, perda de funcionalidade ou busca por tratamento. Dessa forma, a avaliação dessas experiências passa a exigir uma análise mais detalhada do impacto que elas têm na vida do paciente, levando em consideração o contexto sociocultural e religioso.

A visão cristã espírita, conforme exposta no “Livro dos Espíritos” de Allan Kardec, aborda a influência dos espíritos sobre os pensamentos e atos humanos. Na questão 459, Allan Kardec pergunta:

“Influenciam os Espíritos em nossos pensamentos e em nossos atos?”

A resposta é:

“Muito mais do que imaginais. Influem a tal ponto, que, de ordinário, são eles que vos dirigem.”

Após essa reflexão, é relevante considerar o episódio bíblico em que Jesus expulsa os demônios do homem da cidade de Gadara. (Lc 8, 27-39). O que o equívoco dos exorcismos pouco resolve, termina sendo bem sucedido nas sessões mediúnicas e de esclarecimento, onde a perspectiva sugere que muitas manifestações consideradas patológicas podem, na verdade, ser atribuídas a influências espirituais, exigindo uma abordagem diagnóstica mais sensível e integrada.

Além disso, é importante destacar que há um número significativo de pacientes psiquiátricos internados em clínicas e hospitais com diagnósticos de esquizofrenia e fenômenos dissociativos ou outras condições mentais, os quais tomam múltiplos medicamentos antidepressivos simultaneamente com ansiolíticos e indutores de sono. No entanto, por trás da aparente patologia, pode estar apenas a sobreposição de interferências espirituais.

Nesse contexto, a sensibilidade mediúnica, definida como a capacidade de perceber ou interagir com entidades espirituais, pode ser confundida com sintomas de transtornos mentais. Estudos indicam que experiências mediúnicas, embora possam apresentar características dissociativas, não estão necessariamente associadas a prejuízos funcionais ou sofrimento significativo. Por exemplo, uma pesquisa com médiuns espíritas no Brasil revelou que, apesar de apresentarem altos escores em medidas de dissociação, esses indivíduos possuíam bons índices de socialização e adaptação, além de baixos índices de abuso na infância.

Em matéria recente, o Jornal Opção publicou um estudo científico conduzido por Sérgio Vencio, ex-Secretário de Saúde de Goiás, que investigou a relação entre mediunidade e transtornos dissociativos, comparando a saúde mental de médiuns e não médiuns dentro ou fora do mesmo contexto religioso. A pesquisa utilizou o Dissociative Disorders Interview Schedule (DDIS), uma ferramenta que avalia sintomas dissociativos e psicopatológicos. Foram analisados 47 médiuns e 22 voluntários não médiuns, comparando seus resultados com dados históricos de pacientes com transtorno dissociativo de identidade.

A conclusão reforça a hipótese de que a mediunidade pode ser uma forma não patológica de fenômenos dissociativos, alinhando-se a estudos anteriores sobre o tema. “Quando analisamos os resultados dos médiuns, observamos um aumento de dopamina, hormônios associados à sensação de bem-estar, à meditação, aos estímulos circulatórios e à religiosidade de uma forma geral”, explica Sergio Vencio ao Jornal Opção.

Portanto, é essencial que profissionais de saúde mental adotem uma abordagem culturalmente sensível e diferenciada ao avaliar pacientes que apresentam experiências espirituais, distinguindo entre manifestações culturais ou espirituais legítimas e sintomas de transtornos mentais que requerem intervenção médica. 

A transição do CID-10 para o CID-11 marca um passo importante na evolução da compreensão dos fenômenos de transe e possessão. A nova classificação permite uma abordagem mais culturalmente informada e sensível, que respeita as práticas espirituais e religiosas, sem rotulá-las como patologias. A contribuição de médicos como Sérgio Felipe Nogueira e Alexander Moreira-Almeida é fundamental para esse entendimento, pois eles ressaltam a importância de uma avaliação respeitosa e contextualizada desses fenômenos.

Ao considerar o contexto cultural e o sofrimento psíquico do paciente, o CID-11 oferece uma visão mais refinada e inclusiva dos fenômenos de transe e possessão. Essa abordagem possibilita um diagnóstico mais preciso e humano, respeitando a diversidade cultural e espiritual dos pacientes.

  • Leia também: Ciência e espiritualidade: pesquisa avalia impacto da mediunidade na saúde mental

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