Desdém dos EUA pela Europa ameaça aliança histórica de segurança e comércio

A recente exposição do desprezo visceral das principais autoridades de segurança e defesa dos EUA pelos aliados da Europa chocou a diplomacia do lado de lá do Atlântico. O incidente ocorreu após um vazamento inesperado: um bate-papo no aplicativo Signal entre figuras centrais do governo Trump, incluindo o vice-presidente J.D. Vance e o secretário de Defesa Pete Hegseth, veio a público devido a um erro impressionante e inusitado de segurança. O editor-chefe da revista The Atlantic, Jeffrey Goldberg, foi adicionado por engano ao grupo e tornou a conversa sensível sobre defesa nacional pública.

A discussão girava em torno dos ataques planejados contra os rebeldes houthis no Iêmen para desbloquear as rotas comerciais no Canal de Suez. No diálogo vazado, Vance teria discordado de Trump ao questionar a relevância da operação para os EUA, ressaltando que apenas 3% do seu tráfego comercial depende do canal, em contraste com os 40% da Europa. Hegseth, por sua vez, expressou irritação com o “oportunismo” europeu, enquanto outros membros do governo discutiam formas de garantir que os europeus pagassem pelos custos da intervenção militar americana. A reação europeia foi de “nojo”, segundo uma fonte da UE, exacerbando a desconfiança mútua.

“Por que salvar a Europa?”, disse Vance. Pete Hegseth, secretário de Defesa, ecoou: “É PATÉTICO”, referindo-se à dependência europeia. As críticas de Vance aos valores europeus (como aborto e liberdade de expressão) e a simpatia de Trump por Putin corroem a narrativa de “valores compartilhados” e revelam um abismo cultural. Para a Europa, alinhar-se a um aliado que flerta com autoritarismo mina sua credibilidade como defensora da democracia liberal.

Para Trump, a Europa representa valores progressistas contrários ao seu nacionalismo conservador. Essa cisão dificulta cooperação em temas como mudança climática e direitos humanos, ampliando o fosso transatlântico.

Ressentimentos na relação EUA-Europa: da Guerra Fria ao “America First”

A aliança EUA-Europa, construída sobre os escombros da Segunda Guerra Mundial, sempre teve fissuras. Enquanto a Europa Ocidental priorizou o welfare state pós-Guerra Fria, os EUA mantiveram gastos militares elevados (3,7% do PIB) e 100 mil soldados em solo europeu. Desde aquele período pós-1945, a parceria entre Estados Unidos e Europa tem sido um pilar da ordem internacional, sustentada pela OTAN e pela integração econômica. Os EUA garantiam segurança militar, enquanto a Europa dependia desse “guarda-chuva” para focar em bem-estar social. No entanto, sob o governo Trump, a relação tornou-se tensa, com críticas recorrentes aos gastos militares europeus e divergências sobre valores.

A revelação intensificou um clima de desconfiança que já vinha se agravando. O presidente Donald Trump e seus aliados veem a Europa como uma “aproveitadora”, sustentada pelo poder militar dos EUA sem contribuir proporcionalmente para a própria defesa. “Os europeus vivem às nossas custas”, resumiu Hegseth no vazamento. A relutância de países europeus em atingir a meta de 2% do PIB em gastos militares, estipulada pela OTAN, é um ponto de atrito constante. Em contraste, Washington destina 3,7% de seu PIB à defesa.

A Europa, por sua vez, enfrenta um dilema existencial. Com a agressividade renovada da Rússia e a instabilidade global crescente, a dependência da proteção americana se torna uma vulnerabilidade. A possibilidade de um abandono gradual por parte dos EUA impulsiona debates sobre uma maior autonomia militar europeia, incluindo o fortalecimento da cooperação em defesa e segurança dentro da União Europeia.

Vantagens para Rússia e China

Sem os EUA, a Europa levaria anos para reconstruir capacidades militares, deixando-a vulnerável a ataques híbridos e eventual pressão russa.

A Europa ainda depende dos EUA para inteligência, defesa aérea e dissuasão nuclear. Apesar de discursos sobre autonomia estratégica (como o plano de defesa da UE), a falta de investimento e coordenação persiste. O temor é que o desinteresse de Trump pela Otan e sua admiração por Putin minem a dissuasão contra Moscou. “Se os EUA retirarem apoio, a Europa estará desprotegida”, alerta um analista do Le Figaro.

Um rompimento forçaria a UE a buscar alternativas — como parcerias com a China ou até mesmo uma reaproximação cautelosa com a Rússia —, mas isso exigiria tempo e recursos que atualmente não existem.

A ascensão da China exige cooperação transatlântica em tecnologia (5G, IA) e comércio. Uma ruptura permitiria que Pequim explorasse divisões, oferecendo investimentos à Europa ou ampliando parcerias estratégicas. A recente crise no Mar de China Meridional ilustra como a falta de unidade ocidental beneficia adversários.

Vulnerabilidades estratégicas para os EUA

Quando e onde usar a força militar americana é uma das ações presidenciais mais sensíveis e cheias de riscos. Se o inimigo tem acesso prévio a esse tipo de informação, pode colocar vidas — e objetivos de política externa nacional — a perder.

Além disso, o fato dessas conversas terem ocorrido fora dos canais governamentais previstos pode configurar uma violação da legislação, que define regras para lidar com informações confidenciais. Por isso, o parlamentar democrata Chris Deluzio declarou que o Comitê de Serviços Armados da Câmara, do qual ele faz parte, deve conduzir uma investigação e uma audiência sobre o ocorrido o mais rápido possível.

Por outro lado, a própria possibilidade de ruptura entre aliados imprime riscos de ordem geopolítica para os EUA. A Europa é crucial para conter a Rússia e contrabalançar a China. Uma ruptura enfraqueceria a capacidade dos EUA de projetar poder em crises como a guerra na Ucrânia ou disputas no Indo-Pacífico, com perda de alavancagem geopolítica.

Tarifas retaliatórias, como as ameaçadas por Trump contra bebidas europeias, podem prejudicar setores-chave (agronegócio, tecnologia) devido à interdependência econômica desta aliança. A UE é o maior parceiro comercial dos EUA, com um fluxo de US$ 1,3 trilhão anuais. Tarifas recíprocas poderiam custar bilhões e desestabilizar cadeias globais levando a uma profunda crise econômica. No Signal, Stephen Miller sugeriu “ganhos econômicos” como contrapartida por operações militares, indicando uma mercantilização da aliança.

A visita de Maros Sefcovic e Ursula von der Leyen a Washington nesta semana busca conter novas tarifas, mas a desconfiança é mútua. “A Europa precisa escolher: pagar ou se proteger sozinha”, disse um assessor de Trump à FranceInfo.

A OTAN e a ONU dependem da coesão transatlântica o que poderia implicar num enfraquecimento de instituições multilaterais. Um divórcio incentivaria potências rivais, como Rússia e China, a expandir sua influência em espaços como os Bálcãs e o Mar do Sul da China.

    Um realinhamento global?

    A hostilidade crescente entre os dois lados do Atlântico levanta questionamentos sobre o futuro da ordem global. Enquanto os EUA redirecionam sua atenção para a competição com a China, a Europa se vê forçada a reconsiderar suas alianças. A possibilidade de um eixo franco-alemão mais independente e de um fortalecimento dos laços com potências emergentes, como o Brasil e a Índia, ganha força.

    Ao mesmo tempo, a afinidade de Trump com Vladimir Putin preocupa os europeus, que veem a Rússia como uma ameaça imediata à sua segurança. A insistência de Washington em que os europeus assumam um maior papel financeiro e militar, somada às críticas ideológicas de figuras como Vance — que condena valores europeus como a defesa dos direitos reprodutivos e das liberdades civis —, sinaliza um afastamento que pode ter consequências profundas.

    Ponto de inflexão

    O vazamento do bate-papo no Signal é símbolo de uma crise latente que pode redefinir a dinâmica das relações internacionais. Se a Europa decidir reforçar sua independência estratégica, os EUA podem perder uma aliada tradicional e influente. Se, por outro lado, os europeus cederem às pressões americanas, sua soberania e capacidade de decisão poderão ficar ainda mais comprometidas. Em um mundo cada vez mais polarizado, a erosão da aliança transatlântica pode redesenhar o tabuleiro geopolítico de formas imprevisíveis.

    Uma aliança que enfrenta seu maior teste desde a Guerra Fria. Enquanto os EUA questionam o custo de sustentar a Europa, os europeus temem serem reféns de um aliado volátil. O divórcio é um luxo que nenhum dos lados pode pagar. O diálogo é urgente: sanções e retórica belicosa só aprofundarão as feridas. A alternativa — uma ruptura — não só enfraqueceria a segurança global baseada em termos do imperialismo norte-americano, mas aceleraria a transição para um mundo multipolar, onde EUA e Europa perderiam influência para rivais estratégicos.

    Como resumiu o diplomata europeu: “É horrível de se ver com todas as letras. Mas não é surpreendente”. A aliança sobreviverá apenas se ambos reconhecerem que, sem cooperação, todos perdem.

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