“Entre a Toga e o Perdão”, o caleidoscópico relato de Salatiel Correia, está repleto de sabor e saber

“Entre a Toga e o Perdão” (LC Design & Editorial, 236 páginas), de autoria do engenheiro, administrador e escritor Salatiel Pedrosa Soares Correia, é um livro multifacetado, que assume aspectos variados, no correr da leitura. Ora é um relato biográfico, ora é uma catarse psicológica, é às vezes uma crítica econômica do setor energético brasileiro, que o autor conhece muito bem, e ainda é, em um trecho, um pequeno romance.

Mas não pense o leitor que essa variedade de abordagens torna o livro complexo ou dispersivo. Tudo se encaixa numa única trama de fatos, às vezes de uma realidade que hoje pode parecer fantástica, perfeitamente ligados em uma narrativa clara, fluente, que nos prende até a última página.

Pedro Soares Correia: desembargador | Foto: Arquivo da família

O livro é como um quebra-cabeças em que as peças, aparentemente incompatíveis, acabam por se encaixar e formar um desenho coerente ao final. E nenhuma ficção supera o real, diz o adágio. Afinal, Salatiel tem vários livros publicados, não é um novato na literatura brasileira, e sua produção sempre tem qualidade.

Numa mescla biográfica, Salatiel mostra principalmente os trechos mais marcantes da existência de seu pai, Pedro Soares Correia, nascido em 1926, numa propriedade rural de Porto do Vau (posteriormente Itacajá), no que era, à época o setentrião goiano, hoje Estado do Tocantins.

O mestre em Economia descreve os episódios mais importantes de sua própria formação técnica e de seus primeiros passos profissionais como engenheiro.

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Os jovens de hoje não poderão imaginar um Brasil da primeira metade do século XX, litorâneo, onde os únicos centros verdadeiramente civilizados só existiam à beira-mar, enquanto o grande interior brasileiro, de baixíssima densidade populacional carecia de tudo: infraestrutura, saúde, educação, segurança.

Não à toa, Salatiel, apreciador da obra prima de Gabriel García Márquez, “Cem Anos de Solidão”, traça um paralelo, aliás bastante inteligente e veraz, entre o povoado Macondo do escritor colombiano e as cidadezinhas do então norte goiano, como a Itacajá de nascença de seu pai.

Mas Pedro Soares Correia não se acomodaria na solidão interiorana. Partiria para o Recife, onde estudaria por sete anos, abrindo o caminho para a formatura em Direito em 1959, o concurso para juiz, a promoção a desembargador e a presidência do Tribunal Regional Eleitoral Goiano.

Salatiel relata, nas passagens de sua própria carreira, de sua formação técnica, de sua vivência profissional, os dilemas éticos que enfrentou.

Irapuan Costa Junior e Salatiel Soares Correia: escritores | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

O leitor, familiarizado com a modernidade dos transportes, a infraestrutura tecnológica, a comunicação instantânea, sequer poderá conceber as dificuldades de Pedro Correia para atingir seus objetivos existenciais.

A viagem de Pedro Correia, de Itacajá a Recife, em busca de conhecimento, independência, formação profissional e elevação das condições de vida, durava semanas. Os meios de transportes e eram os mais variados e os menos confortáveis. Travessia do Rio Tocantins em barco, trechos a cavalo, percurso de trem em Goiás e Minas Gerais, ônibus e caminhões atravessando a Bahia, até a chegada em Recife.

Já a formação profissional de Salatiel, iniciada em 1976, com seu ingresso na escola de engenharia seria mais amena, embora desafiante.

Arguto, dedicado, portador de uma honestidade profissional herdada da rígida disciplina familiar de então, o jovem engenheiro enfrentaria desafios éticos e os superaria com galhardia, e que o leitor poderá apreciar no livro. Essa, a parte biográfica.

Como eu disse, existe um trecho romântico, que quem percorre o livro apreciará, não só pelo inusitado do primeiro encontro de Salatiel com sua companheira de vida, Adriana, como pela lição que ele dá a todos nós, casados, de compreensão, de convivência, de amor conjugal e paternal e de amizade, que fazem a vida em comum de um casal sólida e duradoura.

A juventude de hoje não imagina a rigidez disciplinar nos lares interioranos chefiados pelos pais nascidos no primeiro quartel do século XX.

Como as dificuldades não só eram muitas como eram imensas, superar o nível de pobreza era o que todos os pais desejavam para seus filhos.

Mas essa superação exigia qualidades de conhecimento, persistência, honestidade e tudo mais que reforça uma luta pela vida em condições adversas. E os nossos pais lutavam para nos incutir essas qualidades, sabendo o quanto seriam importantes para nossa batalha pelo progresso pessoal. Um bom desempenho escolar, um comportamento social comedido, o cultivo de uma religião, a abstenção de vícios como a bebida, o fumo e os jogos de azar, a obediência aos pais, o respeito aos mais velhos, tudo isso era exigido dos jovens, e tanto mais exigido quanto mais esclarecidos os casais paternos.

A inflexibilidade dessas exigências por vezes, para não dizer quase sempre, era considerada exagerada pelos jovens, e os deixava traumatizados, insatisfeitos com a direção paterna ou materna, trauma só superado muitos anos depois, na maturidade, quando alargada a visão de mundo, vividos também, percebíamos que toda aquela rigidez havia tido sua utilidade e nos auxiliado no galgar alguns degraus a mais na prosperidade e no ser cidadãos mais úteis, respeitados e de boa convivência.

É desse trauma, dessa conturbação na relação com o pai e de sua superação que Salatiel fala, mais de uma vez, no correr de sua narrativa. E de como vem o apaziguamento interior que todos nós, de gerações mais antigas, acabamos por obter, quando contemplamos nossa estrada de vida e compreendemos, então, que ela foi aplainada por nossos pais no que nos parecia excesso de imposições, mas que traduzia apenas o desejo de remoção de obstáculos e depressões em nossa trajetória, temperando nossa força de vontade.

O caleidoscópico relato de Salatiel está repleto de sabor, de saber e de atração. Quem ler, há de concordar.

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