Por que é tão difícil derrubar estátuas de escravizadores?

Quem passa pela praça localizada no cruzamento das ruas do Catete e Conde de Baependi, no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, se depara com uma grande estátua no centro: um José de Alencar esculpido em bronze, sentado em uma cadeira imponente. Na base do monumento, há cenas de algumas das obras mais famosas do escritor, como O guarani e Iracema. No entanto, não há menção ao outro lado de José de Alencar, o de político influente do Império, membro do Partido Conservador e defensor da escravidão no Brasil.

Cartas escritas por Alencar, sob o pseudônimo de Erasmo, dirigidas ao imperador dom Pedro II, mostravam as opiniões do escritor sobre o sistema escravista, que, segundo ele, foi necessário para o avanço da “marcha da humanidade”. A 8 quilômetros dali, há outro monumento de um escravista. Francisco José da Rocha Leão, primeiro barão de Itamarati, é homenageado com um busto em bronze na praça Santos Dumont, na Gávea. Como Alencar, nada se lê sobre seu caráter escravocrata.

Homenagens públicas como essas, a pessoas que escravizaram ou defenderam o sistema escravista, eugenistas ou genocidas, têm sido cada vez mais questionadas pela sociedade civil. Só na capital fluminense, entre os aproximadamente 1.350 monumentos existentes, há 349 homenagens a personalidades, muitas delas escravagistas. De acordo com a Secretaria Municipal de Conservação, 210 são bustos, 97 estátuas, 14 esculturas e 28 efígies. Entre eles, há estátuas como o busto do Padre Antônio Vieira, jesuíta português que em seus sermões justificava a escravidão africana por meio da fé. Abaixo do busto, uma placa diz “Defensor dos índios, escravos e judeus”. Outra personalidade sabidamente escravista é a de duque de Caxias, patrono do Exército Brasileiro. Há um monumento na avenida Presidente Vargas, em frente ao Palácio Duque de Caxias, construído para abrigar seus restos mortais. O militar foi proprietário de uma fazenda de café que contava com mão de obra escravizada. 

Para o historiador e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Júlio César Medeiros da Silva Pereira, a permanência desses monumentos não é apenas uma questão simbólica, mas também pedagógica. Segundo Medeiros, os monumentos são erguidos como forma de perpetuar uma memória oficial, que geralmente é a dos vencedores. Nomes de ruas, praças, hospitais e escolas carregam essa narrativa, reforçando uma visão de história que exclui e marginaliza outras perspectivas. “As novas gerações vão vendo e vão aprendendo a história através desses monumentos”, diz. “Nós sabemos que a história não foi dessa forma, foi uma grande violência por trás do que é contado, com a dizimação dos indígenas.” 

A museóloga do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Maria Clara Cunha, explica que um monumento é uma exaltação, portanto, um reforço de um conjunto de valores, ideais de um povo, de uma população. “Quando não representa a grande maioria de um grupo, não faz mais sentido manter aquilo da mesma forma ali.”

Mas derrubar esses monumentos ou proibir que novas homenagens a escravagistas sejam erguidas é um assunto que enfrenta resistência política no Brasil. No Rio de Janeiro, por exemplo, uma lei (8.205/2023), de autoria do então vereador e atualmente deputado Chico Alencar e da vereadora Monica Benicio, ambos do PSOL-RJ, pretendia proibir homenagens a violadores de direitos humanos e previa que monumentos e estátuas fossem transferidos para espaços como museus – fechados ou ao ar livre –, acompanhados de informações que contextualizassem a atuação dessas personalidades na história do Brasil, incluindo seu envolvimento com a escravidão. Mas a norma foi revogada logo depois de sua promulgação, no início de 2025, pelo prefeito Eduardo Paes (PSD). 

A revogação da lei foi defendida por vereadores de extrema direita como Carlos Bolsonaro (PL), Dr. Rogério Amorim (PL), Pedro Duarte (Novo), Dr. Gilberto (Solidariedade) e Carlo Caiado (PSD). A justificativa apresentada pela anulação foi a preservação do patrimônio cultural tal como foi concebido, sem “revisionismo histórico”.  

Caiado, que preside a Câmara de Vereadores do Rio, é primo do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil). De acordo com o levantamento da Agência Pública, ele também descende do tenente-coronel Antônio José Caiado, um “abolicionista escravista”. 

O vereador Pedro Duarte, em coluna para o jornal O Dia, disse que a proposta pode ser perigosa para a história do país, ao “permitir que alguns escolham em nome de todos”. “É correto julgar as vidas, escritos e decisões daqueles que vieram antes de nós, sem permitir que as gerações futuras formem seus próprios julgamentos?”, questionou.

Os autores do projeto consideram o argumento de apagamento histórico uma “distorção usada para evitar debates sobre a memória e a reparação histórica no Brasil”. “A lei não é caça às bruxas. A gente reconhece o artista que fez as estátuas, as suas motivações, a época. A gente estabelecia que a definição de retirada de qualquer escravocrata, ou genocida, preconceituoso notório, eugenista, racista, tinha que ser analisada por uma comissão de patrimônio histórico e artístico. Não era, assim, do arbítrio exclusivo do prefeito ou do secretário, por exemplo “, explica Alencar.

A reportagem procurou os vereadores signatários da revogação da lei. Apenas Rogério Amorim respondeu aos questionamentos, por meio de assessoria de imprensa. O vereador considera “esse tipo de lei esdrúxula”, diz que o exame das figuras históricas é pouco rigoroso e enviesado e que “quem acha que apagar a história é resistir ao racismo definitivamente não conhece a História”. “É preciso entender o contexto da época. A esquerda apoiou todas as tentativas de vandalização da estátua de Borba Gato ou mesmo os ataques à memória de Fernão Dias Paes Leme e no entanto foram duas figuras históricas importantes para o Brasil e para São Paulo”, diz o texto. “Ela precisa aprender a distinguir entre figuras controversa e deplorável. Por exemplo, Zumbi é uma figura controversa, lutou contra a escravidão e teve escravos. Já o ex-ministro Silvio Almeida é uma figura deplorável, passou a vida perseguindo pessoas e chamando-as de racistas para depois ainda se vitimizar, como fez esse fim de semana, mesmo com todas as acusações de assédio moral e sexual. Mas sobre esse aí a esquerda não fala”, acrescenta.

A museóloga Maria Clara Cunha acredita que existe uma confusão entre os significados de “ressignificar uma homenagem” e “apagar uma homenagem”. “As pessoas pensam que, ao retirar uma estátua do lugar e botar num outro, vai apagar a memória. E não é esse o ponto, que seria falar exatamente quem foi aquela pessoa e o que ela representava naquela sociedade, naquele contexto”, analisa.

Na contramão da história

O movimento político que culminou na revogação da lei carioca demonstra uma resistência ao enfrentamento do racismo estrutural no Brasil, na opinião da vereadora Monica Benício. Ela considera a decisão um desrespeito ao processo democrático e critica a falta de diálogo público sobre o tema, “feita a toque de caixa no apagar das luzes do ano legislativo”.

“A iniciativa de revogar a lei veio das mesmas forças políticas que tentam negar o racismo e a violência contra os pobres, estrutural no Brasil. Eles chamam a ditadura militar de ‘revolução’ e defendem a tentativa de golpe do 8 de janeiro, sempre buscando desqualificar qualquer política de reparação com medo de seus privilégios serem atingidos. No geral, os vereadores da Câmara Municipal costumam estar abertos a um diálogo republicano, mas o que fizeram nesse caso escancarou que esse tema não é bem-vindo na casa que deveria ser do povo”, afirmou Benicio. 

Segundo Chico Alencar, que é historiador de formação, a lei tinha um papel educativo. “Toda cidade tem que ser entendida também pedagogicamente por aqueles que nela moram ou a frequentam. Daí [surge] o nosso projeto de lei, que virou lei e que agora foi revogada absurdamente. A história não é um campo de certezas, de exatidões. É um espaço de cultura e memória a ser revisitado sempre e, portanto, revisto”, afirma.

Os desafios para fazer avançar leis que proíbam homenagens a escravizadores no Brasil vão na contramão do movimento mundial de reparação dos danos causados pela escravidão e de questionamento sobre as figuras que são celebradas historicamente. Nos Estados Unidos e na Europa, estátuas de líderes confederados e colonizadores têm sido alvo de protestos e remoções, que ganharam força a partir de 2020, com o assassinato de George Floyd por um policial no estado de Minnesota, que resultou em protestos contra o racismo nos EUA. No Brasil, a estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, foi incendiada em julho de 2021 por manifestantes que criticavam a celebração de um personagem associado à escravização de indígenas.

“Há um debate mundial sobre a necessidade de se rever esses processos todos. E, enquanto isso, a cidade do Rio insiste em fechar os olhos para a possibilidade de acompanhar o tão necessário debate sobre a própria história”, avalia Benício.

Questão nacional 

Outras leis e projetos já foram apresentados para tratar da remoção, ressignificação ou realocação de monumentos ligados a figuras escravistas e eugenistas no Brasil. No âmbito federal, o Projeto de Lei (PL) nº 5.923/2019, de autoria da deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ), propõe a proibição de monumentos que homenageiam figuras históricas ligadas à escravidão. Mas a lei não avançou e ainda aguarda parecer da Comissão de Cultura.

Propostas semelhantes têm sido apresentadas em âmbito municipal e estadual. Um exemplo é a cidade de Olinda (PE), onde foi sancionada a Lei nº 6.193/2021, a primeira legislação municipal do país com esse objetivo. De autoria do então vereador Vinicius Castello (PT), a norma identificou pelo menos 13 vias, monumentos e dispositivos municipais sujeitos a renomeação por homenagearem escravistas e defensores da ditadura.

Em Itapira (SP), a Lei nº 6.373/2024 foi promulgada como parte da adesão da prefeitura ao Pacto Coletivo por Cidades Antirracistas, uma iniciativa do Ministério Público de São Paulo para incentivar ações municipais de combate ao racismo. Já em Guarujá (SP), no litoral paulista, a Lei nº 5.243/2024 também estabelece a proibição de homenagens a escravistas, incluindo a remoção de monumentos e a mudança de nomes de vias públicas.

No âmbito estadual, proposta semelhante foi apresentada na Assembleia Legislativa do Estado da Bahia (Alba) pelo deputado Marcelino Gallo (PT), mas arquivada em 2023 sem parecer. Em 2024, o mesmo proponente retornou com um novo projeto de lei com o mesmo objetivo, que atualmente está na Comissão de Constituição e Justiça. Por meio de assessoria, o deputado respondeu à Pública que até o momento não houve apresentação contrária à proibição. 

Antes disso, em São Paulo, a ex-deputada Erika Malunguinho (PSOL) propôs a proibição de homenagens a escravistas, apoiada pelos núcleos especializados de Habitação e Urbanismo e de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e por organizações da sociedade civil e grupos de pesquisa. O PL, após ter recebido parecer contrário do relator Gilmaci Santos (Republicanos) e distribuído sem voto para outros parlamentares, também foi arquivado em 2023.

A sociedade civil e universidades também apresentaram projetos de ressignificação de homenagens. Exemplos dessa movimentação podem ser vistos online, como a Salvador Escravista (mapeamento de homenagens públicas controversas instaladas na capital baiana, cidade que foi o segundo maior porto de chegada de africanos durante o tráfico transatlântico de escravizados, nos séculos 18 e 19) e a Galeria de Racistas (projeto publicado online em 2020, comandado pelo Coletivo de Historiadores Negros Teresa de Benguela, o site Notícia Preta e um coletivo de publicitários negros, e que virou livro em 2023).

No início do ano, a Defensoria Pública da União, por meio do Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais, foi intimada a contribuir com uma ação popular em São Luís, capital do Maranhão, que culminou na nota técnica recomendando a retirada de homenagens a pessoas associadas ao escravismo, racismo e eugenia. O documento surgiu em manifestação à homenagem prestada ao psiquiatra Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), que nomeia um hospital público estadual localizado no município.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.