É verdade que a Bíblia proíbe mulheres de trabalhar fora?


A Bíblia contém fragmentos que, quando interpretados de forma literal, indicam esta divisão — mas entender de forma literal trechos bíblicos é sempre arriscado. Priscila, retratada em obra do artista britânico Harold Copping, era fabricante de tendas, conforme conta o livro Atos dos Apóstolos
Domínio Público
Certa vez o pastor batista Yago Martins recebeu uma fiel em sua igreja, na periferia de Fortaleza, enfrentando um dilema que, aos olhos dela, era praticamente insolúvel. Ela ganhava mais do que o marido e achava que isto estava errado ou que era pecado.
A história faz parte do livro Igrejas Que Calam Mulheres, que o pastor, teólogo e youtuber lançou recentemente. Ele detalha que na conversa a mulher começou achando que o seu marido era “vagabundo” porque não conseguia ser o provedor material da casa.
Martins mostrou à fiel que o homem era digno, frisando que ela mesma havia contado que o sujeito acordava todos os dias às 4h30 e só retornava depois das 18h, tanto era o trabalho.
Só que mal-remunerado. Insuficiente até mesmo para pagar uma creche integral para os filhos.
Essa mulher estava reproduzindo uma visão muito comum no meio cristão fundamentalista, principalmente em igrejas pentecostais — e o próprio Martins cita alguns sermões de outros pastores defendendo que lugar de mulher é em casa, cuidando do lar, enquanto o marido é quem precisa trazer o sustento.
Em entrevista à BBC News Brasil, o pastor defendeu haver um “propósito divino” nos papéis entre homem e mulher na sociedade, mas enfatizou que em casos como o dessa fiel, cioso dos problemas socioeconômicos contemporâneos, sua postura vai no caminho de mostrar que não há nada errado na mulher trabalhar fora ou mesmo ganhar mais do que o marido.
“A gente vive no Brasil, em um país de muita pobreza. Mulheres que trabalham fora não o fazem simplesmente para poder desenvolver seu propósito no mundo ou o que quer que seja. É também sobrevivência”, argumenta. “Eu sou pastor de periferia. A maioria ganha um salário mínimo. Nesse cenário, como vou falar para uma mulher não trabalhar fora?”
Outro fenômeno das mídias sociais, o padre católico conhecido como frei Gilson, também tem provocado reações diversas ao defender que as mulheres ocupem um papel secundário na família.
Em uma oração transmitida pelas redes sociais, frei Gilson criticou o empoderamento feminino e defendeu que as mulheres devem atuar de forma auxiliar aos homens.
“Essa é uma fraqueza da mulher: ela sempre quer ter mais. ‘Eu não me contento só em ser… em ter qualidades normais de uma mulher. Eu quero mais’. Isso é ideologia dos mundos atuais. Uma mulher que quer mais… vou até usar a palavra que vocês já escutaram muito: empoderamento”, disse.
Pouco depois, ele complementou.
“O homem, foi dado a ele a liderança, mas a mulher tem o desejo de poder. Não é desejo de serviço, é desejo de poder. Repito a palavra: empoderamento. Portanto, eu já começo a falar: a guerra dos sexos é ideologia pura, é diabólica. Para curar a solidão do homem, Deus fez você [mulher]. Ela nasceu para auxiliar o homem”, disse.
Machismo e estereótipo
Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o teólogo e filósofo Gerson Leite de Moraes acredita que esta questão presente nos textos considerados sagrados é “fruto de machismo de uma estrutura que está posta na história”. “Mas não há machismo que resista a uma renda baixa. Se a mulher puder ajudar, com certeza esse dinheiro é bem-vindo”, diz ele, à BBC News Brasil.
Mas se existe esse estereótipo reforçado pela religião, qual a raiz de tal discurso de papéis? A Bíblia contém fragmentos que, quando interpretados de forma literal, indicam esta divisão. A começar pelo livro do Gênesis.
No relato da criação do mundo, quando Adão e Eva são expulsos do paraíso, Deus roga uma espécie de maldição sobre eles. “Ele disse à mulher: ‘farei com que na gravidez tenhas grandes sofrimentos; e com dor há de gerar filhos […]’. Ele disse a Adão: ‘[…] o solo será maldito por tua causa. É com fadiga que te alimentarás dele todos os dias de tua vida; ele fará germinar para ti espinho e cardo, e tu comerás da erva do campo. No suor do teu rosto comerás o pão […]”, diz o trecho bíblico.
Por paralelismo, quem toma este trecho ao pé da letra entende que Deus determinou que o homem trabalhe. À mulher, estaria reservada a maternidade.
Avançando um pouco, este é o modelo retratado no Salmo de número 128. “Tu te alimentas do trabalho das tuas mãos. Feliz de ti”, exalta. “Tua mulher é uma vinha generosa no interior de tua casa”, prossegue.
Passado versus presente
Entender de forma literal trechos bíblicos, contudo, é sempre arriscado. “Denota anacronismo”, esclarece à BBC News Brasil a filósofa e teóloga feminista Ivone Gebara, freira agostiniana e autora de, entre outros, As Incômodas Filhas de Eva na Igreja da América Latina.
“Não se pode comparar as sociedades agrárias do passado e do Oriente com a atual situação de trabalho no mundo capitalista. Não se deve buscar ‘concordismo’ com a Bíblia”, adverte Gebara. “Isto é injusto com a Bíblia e com os tempos atuais.”
Martins pontua que “trabalhar fora é um conceito muito moderno”. “No mundo antigo, no mundo em que a escritura foi redigida, o trabalho era muito próximo da casa”, explica o pastor. “O homem ia para o campo, provavelmente os filhos dele, assim que tivessem certa idade, iriam com ele. Nesse campo ele iria colher. E era um trabalho fisicamente muito desgastantes.”
Defensor da corrente conhecida como “design divino”, segundo a qual condições biológicas decorrentes da forma como Deus teria criado os seres humanos são determinantes para seus papéis sociais, ele diz que este trabalho braçal “era mais comum aos homens” porque “temos uma estrutura óssea mais densa, estrutura muscular maior”. De acordo com esse raciocínio, isto faria com que aguentassem trabalho exaustivo “muito mais do que as mulheres, que ficariam em casa, trabalhando na matéria prima, fazendo roupa, fazendo pão”.
“A Bíblia deve ser interpretada dentro de seu contexto histórico-social”, enfatiza à BBC News Brasil a teóloga e pedagoga Andreia Cristina de Morais, freira da Congregação das Pequenas Missionárias de Maria Imaculada e professora na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). “No período em que foi escrita, a grande maioria das mulheres era responsável pela casa e pelos filhos, por isso não era comum uma mulher trabalhar fora.”
“Agora questionar se a escritura diz que a mulher poderia trabalhar fora é uma pergunta muito contemporânea”, discorre o pastor batista. “A escritura estabelece de forma muito clara os papéis do homem e da mulher. A mulher mais voltada para a vida doméstica, mas não exclusivamente. O homem mais voltado para a vida profissional externa, mas não exclusivamente.”
Neste ponto, ele diz que é preciso também levar em consideração que nos tempos pós-industriais o trabalho “deixou de ser sempre fisicamente exaustivo” e muitos são simplesmente intelectuais. E também cita questões contemporâneas, como métodos contraceptivos para evitar gravidezes sequenciais.
“Eu acredito que, por mais que a gente tenha conseguido suplantar nossas diferenças biológicas por meio da tecnologia, ainda existe um cenário de design de propósito divino nessa questão, com o homem mais voltado à produção externa e as mulheres mais para o processo de cuidado doméstico”, afirma Martins, que vê nesse quadro uma “herança biológica evolutiva”. “Somos projetados para isso, de fato. Deus nos projetou nesse cenário.”
No Novo Testamento, os ensinamentos que vão nessa linha são principalmente os contidos nas cartas de Paulo. No texto enviado aos cristãos de Éfeso, cidade grega onde hoje é a Turquia, ele estabeleceu um paralelo entre o casamento humano e o relacionamento de Jesus e a igreja.
“[…] diz que os maridos devem amar suas esposas e ‘alimentar e cuidar’ delas, como Cristo faz com a igreja”, cita a escritora evangélica Francine Veríssimo Walsh, em seu livro Ela à Imagem Dele: A Identidade Feminina à Luz do Caráter de Deus. “As palavras originais gregas encontradas nesses dois verbos sugerem cuidado físico, e não somente espiritual.”
“A ideia, então, é que o marido tem a responsabilidade de garantir a segurança e a estabilidade física de sua esposa […]”, prossegue ela. “Paulo não dá espaço aos maridos para que abram mão da responsabilidade que suas famílias trazem. Assim como o marido ama seu próprio corpo, alimentando-o e cuidando dele diariamente, com o fim de garantir sua sobrevivência, também é comandado a amar sua esposa.”
Para compreender isso é preciso considerar o contexto literário do Novo Testamento. “As comunidades cristãs nasceram na Palestina durante o século 1º d.C., têm suas raízes no judaísmo e se desenvolveram em contato com a diversidade cultural do Oriente Médio, da Ásia Menor e da Europa”, explica à BBC News Brasil a teóloga Adriana Barbosa Guimarães, membro do grupo de pesquisa Leitura Pragmático-Linguística da Sagrada Escritura (Lepralise) e pesquisadora-doutoranda na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Ela ressalta que desde o “período pré-cristão”, na Palestina “as mulheres assumiam as tarefas desempenhadas na casa e os homens, as fora de casa”. “Esta era a ordem social”, esclarece.
O teólogo Moraes acredita que a consolidação desse estereótipo no meio cristão seja consequência dos textos de Paulo. “É possível perceber em Jesus [de acordo com os evangelhos] um comportamento diferente, pois havia muitas mulheres que davam sustentação para seu ministério”, defende ele.
“Talvez elas não estejam em evidência na Bíblia e apareçam de maneira lateral. Mas isto porque, de fato, os redatores de maneira geral estavam refletindo o mundo machista [em que viviam]”, comenta.
A teóloga e pedagoga Morais argumenta que, ainda que “o texto bíblico” quase não apresente “as mulheres trabalhando fora”, isso não significa que “a Bíblia nega o protagonismo da mulher na sociedade”. “Pelo contrário, a mulher tem um papel fundamental, principalmente no anúncio da fé, da ressurreição e da boa nova de Jesus”, afirma ela.
Ensinamento ‘de mãe’
Lídia, também retratada por Harold Copping, era comerciante de púrpura, de acordo com texto bíblico
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Há uma passagem no Antigo Testamento, todavia, que parece destoar dessa visão patriarcal de sociedade. Curiosamente, segundo o texto, seriam palavras de um rei reproduzindo os ensinamentos de sua mãe — muitos especialistas reconhecem que parte das camadas de machismo da Bíblia são decorrentes do fato de ser um conjunto de textos escritos por homens e para homens.
O relato está no último capítulo do livro dos Provérbios e retrata o que seria “uma mulher de valor”. O trecho diz que ela “procura diligentemente a lã e o linho e suas mãos trabalham com alegria”. Também ressalta que feito “navios mercantes”, “de longe faz vir seu alimento”.
Esta mulher se levanta quando é “noite ainda” para “preparar a refeição para a família e distribuir tarefas às criadas”.
Mas não se resume ao lar. É empreendedora. “Põe suas vistas num terreno e compra-o; com o fruto do seu trabalho planta uma vinha. Cinge seus rins de força e firma os seus braços”, diz. Na sequência, também está escrito que “ela fabrica tecidos para vender e fornece cintos ao negociante”.
Em seu livro, o pastor Martins aborda o trecho. Reconhece que “ela está envolvida em compra e venda e em manufatura” e “com ganhos financeiros pra a família”. “Faz negócios, organiza campos, manda plantar vinhas”, afirma ele.
Para o pastor, o texto descreve uma mulher que “se revela boa e respeitável diante do marido e das pessoas à sua volta, inclusive do ponto de vista econômico”. “Diferente do que se poderia pensar, uma mulher de virtudes forjadas no termo do Senho pode ajudar economicamente em sua casa sem desmerecer a provisão do marido; ao contrário, traz-lhe honra”, argumenta.
A seguir, ele frisa que, no seu entendimento, essas atividades da tal “mulher de valor” não são tratadas pelo dualismo casa versus trabalho. “Tudo é uma forma de cuidar do lar”, interpreta, destacando que “o trabalho era uma forma de cuidar da casa, não uma forma de não estar em casa”.
Há ainda a história de outro livro do Antigo Testamento, de Rute. Em seu relato, ela conta que, viúva, trabalhou no campo, recolhendo grãos “num campo atrás dos segadores”. “A sociedade da época vivia em tendas ou em pequenas cidades formadas por agricultores e trabalhadores braçais”, contextualiza à BBC News Brasil a teóloga Tereza Maria Pompeia Cavalcanti, professora aposentada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
Ou seja: nesse contexto ela acredita que histórias de mulheres trabalhando, embora não registradas como as dos homens, tenham sido relativamente comuns. “‘Trabalhar fora’ era natural para as mulheres que viviam em tendas e não só cuidavam da casa mas se encarregavam também dos rebanhos e de ir buscar água nos poços”, comenta ela.
“No período mais agrícola, até no meio urbano as mulheres saíam de casa para participar da colheita, como no livro de Rute”, exemplifica.
Novo Testamento
Imagem de Paulo pregando, em obra de Rafael
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“No Novo Testamento, encontramos duas referências de mulheres que desempenhavam trabalhos fora do espaço doméstico”, apresenta a teóloga Guimarães.
“Há elementos patriarcais, isso não temos dúvida. Mas não podemos simplesmente considerar só este aspecto”, comenta à BBC News Brasil a teóloga, filósofa e biblista Zuleica Aparecida Silvano, freira da Congregação das Filhas de São Paulo, professora na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e integrante da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica. “Há dados de mulheres autonomia. Encontramos mulheres que gestavam seus negócios, o comércio.”
Silvano e Guimarães citam a história de Lídia, contada no livro Atos dos Apóstolos. Trata-se de uma passagem em que Paulo estava pregando na cidade romana de Filipos — na atual Grécia — e conta que espalhou seus ensinamentos a um grupo de mulheres.
“Uma delas, chamada Lídia, era comerciante de púrpura, originária da cidade de Tiatira […]”, nomeia ele, no texto bíblico.
A outra passagem é do mesmo livro. “[Atos dos Apóstolos] também fala de uma mulher chamada Priscila, que abraçou a fé com seu marido. Paulo os conheceu em Corinto, também na [atual] Grécia. Os dois eram fabricantes de tendas”, narra Guimarães.
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