Aos 85 anos, Martha Gellhorn veio ao Brasil, em 1994, pra fazer reportagem sobre meninos de rua assassinados

A americana Martha Gellhorn (1908-1998) foi uma das maiores repórteres do século 20. Cobriu a Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra do Vietnã, entre outras, e circulou por vários países. Escreveu para revistas, como a “Collier’s” e a “New Yorker”, e jornais. Escreveu contos e romances.

Martha Gellhorn cobria os fatos importantes da guerra, aquilo que os editores cobravam, mas também buscava falar do cotidiano das pessoas — tanto de soldados quanto de civis. Tinha uma percepção aguçada dos detalhes, aqueles que, não parecendo tão importantes, resultavam numa, digamos, apreciação mais ampla da vida dos indivíduos.

A britânica Caroline Moorehead, na excelente biografia, “Martha Gellhorn — Una Vida” (Circe, 511 páginas, tradução de Beatriz López-Buisán), mostra como a repórter era séria e rigorosa. Dizia que a “objetividade era uma merda”, mas, quando escrevia, não descuidava da apresentação factual precisa. A imaginação não era usada para edulcorar ou exagerar os fatos, e sim para firmá-los como fatos.

Martha Gellhorn: a repórter americana que, mesmo dizendo que a objetividade era uma “merda”, era altamente precisa no seu material jornalístico | Foto: Reprodução

Na Espanha, ficou ao lado dos Republicanos contra o fascismo. Martha Gellhorn percebeu, com agudeza, que a Guerra Civil Espanhola era o “prefácio” de outra guerra, muito maior e pior, a iniciada em 1939, com a invasão da Polônia. Por isso lastimou a omissão da França e da Inglaterra, que não apoiaram os Republicanos.

O conservador Francisco Franco obteve amplo apoio da Itália fascista de Benito Mussolini e da Alemanha nazista de Adolf Hitler. O massacre de Guernica — imortalizado pelo quadro de Pablo Picasso — representou um teste para verificar a eficácia letal dos aviões e bombas das tropas germânicas. O nazista alemão Hermann Goering admitiu isto.

Caroline Moorehead exibe a história da repórter com rara excelência e consegue um efeito: mostra a importância da escritora. Martha Gellhorn era, por assim dizer, um duplo: escrevia literatura séria e literatura para vender aos jornais. Só para ganhar dinheiro… e sobreviver. A tradutora espanhola usa um termo curioso: “morondanga”, quer dizer, “coisa inútil, de pouca qualidade”.

Martha Gellhorn e Hemingway foram casados e se tornaram “inimigos” | Foto: Gettyimages

A biografia restabelece toda a grandeza da repórter-escritora e da mulher Martha Gellhorn (altamente independente, o que incomodava e assustava os homens). Não se trata de hagiografia: a repórter-escritora e pessoa Martha Gellhorn é exposta com virtudes e defeitos (o relacionamento conturbado com Hemingway é contado de maneira ampla a fim de possibilitar um julgamento justo do leitor). A jornalista abominava sentimentalismo barato e a biógrafa, ao descrevê-la, opta por relatar tudo, sem adocicar ou amargar palavras e informações.

Martha Gellhorn não deve ser considerada apenas como uma das ex-mulheres de Ernest Hemingway, que, por sinal, era um repórter de segunda categoria, dado a invencionices. Sua ex-mulher, como repórter, era muito superior, incomparável. Escritor fino, contista de primeira linha, o autor do romance “Por quem os Sinos Dobram” era, como indivíduo, de uma grosseria ímpar. Chegou a esbofetear a jornalista. E o sexo entre os dois não era bom. Hemingway talvez tenha sido a única paixão do narciso Ernest.

A repórter Martha Gellhorn na Bahia

O apreço pela vida de repórter não cessou nem mesmo com a chegada da velhice. Sempre atenta aos acontecimentos do mundo, Martha Gellhorne veio ao Brasil, em 1994, aos 85 anos para trabalhar.

Um pouco surda e praticamente cega de um olho, a irrequieta Martha Gellhorn tomou uma decisão: precisava ir ao Brasil do presidente Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, a eminência parda.

A repórter havia lido “sobre assassinatos de meninos de rua” e estava obcecada com o fato de as mortes não terem alcançado repercussão no Ocidente. Irritava-a a possibilidade de os “assassinos” ficarem impunes.

Por meio de amigos, Martha Gellhorn buscou informações sobre “esquadrões da morte” brasileiros e sugeriu à “Granta” um artigo ou reportagem sobre o assunto.

O editor da “Granta”, Ian Jack, ficou impressionado com Martha Gellhorn. Com mais de 80 anos, era “uma mulher elegante e cheia de energia, que fumava e bebia”. O jornalista “disse que leria qualquer coisa que ela escrevesse ao voltar” do Brasil.

A irmã do escritor Nicholas Shakespeare, Amanda, dirigia “um programa para meninos de rua no bairro do Pelourinho, em Salvador” e decidiu ajudar a repórter. Na cidade, quatro meninos de rua haviam sido assassinados, em 1993. Ela se dispôs a ciceronear Martha Gellhorn na capital da Bahia.

Martha Gellhorn: uma das mais brilhantes correspondentes de guerra da história | Foto: Gettyimages

O “assassino”, um guarda, aguardava o julgamento da Justiça.

Excelente nadadora, Martha Gellhorn decidiu nadar e mergulhar. Porém, colhida por “uma forte e traiçoeira corrente marinha”, quase afogou. Foi salva por um jovem brasileiro. Ao segurá-la com força, o garoto machucou-lhe um braço, arrancando parte da pele.

Martha Gellhorn, de personalidade forte, não quis ficar hospedada na casa de uma juíza que havia se disposto a ajudá-la na elaboração do artigo para a “Granta”. A jornalista preferia ficar em hotéis.

Amanda Shakespeare e Martha Gellhorn se tornaram amigas. Caroline Moorehead relata que Amanda ficou “impressionada com a feroz capacidade de trabalho da repórter, com sua firmeza, compreensão e simpatia aparentemente instintivas pelos meninos de rua, assim como sua indomável necessidade de conhecer a fundo todos os fatos”.

A elegância de Martha Gellhorn fascinou Amanda. No hotel, quando não estava trabalhando, apreciava bronzear as pernas.

Martha Gellhorn em base militar na Grã- Bretanha, em 1943 | Foto: Reprodução

Durante o dia, a repórter conversava, exaustivamente, com advogados e meninos de rua. Em seguida, Martha Gellhorn e Amanda falavam do Brasil, do mundo e de política. Era bem-informada sobre os acontecimentos globais. Um ser participante, sempre posicionada e nunca conformista.

Ao entrevistar um coronel da Polícia Militar, que falava sobre os meninos assassinados em Salvador, Martha Gellhorn irritou-se. O militar disse que “era um grande admirador de Hemingway”. A repórter “quase o comeu vivo”. Para ela, Ernest era um fato do passado.

Rapidamente, Martha Gellhorn entendeu o contexto dos crimes contra os meninos de rua. Mas continuava fazendo anotações. Ela queria saber mais sobre o guarda acusado das mortes e a respeito dos meninos. Buscou informações sobre os tribunais de Justiça e as prisões do Brasil.

Uma das características de Martha Gellhorn, como repórter e pessoa, era sua imensa capacidade de observar e entender os países que visitava a trabalho ou turismo. As plantas tropicais ao redor do hotel onde havia se hospedado deixaram-na intrigada.

Então, Amanda procurou um especialista para falar sobre a vegetação brasileira.

Como se fosse uma nova Truman Capote, o de “A Sangue Frio”, depois de examinar os autos e ouvir várias pessoas, Martha Gellhorn passou a duvidar que o guarda fosse o verdadeiro assassino dos quatro adolescentes. Ela o entrevistou. A repórter experimentada desconfiava das informações oficiais, muito “ajustadas” pela polícia.

Martha Gellhorn anotou que policiais militares espancaram os meninos e mostrou a pobreza em que viviam as famílias dos mortos.

Quando voltou para Londres, para escrever a reportagem, a repórter continuou acionando Amanda em busca de dados e até informações sobre ortografia.

“O método de trabalho” da repórter era lento (não era uma jornalista convencional, pois seus textos eram mais elaborados). Como quase não enxergava, as dificuldades foram ainda maiores. Ela reescreveu o texto seis vezes e o mandou para Ian Jack, da “Granta”, em letras maiúsculas. A reportagem tinha 45 páginas.

Ian Jack avaliou que o texto sobre o Brasil não era bom para a “Granta”. “Não era um dos melhores artigos de Martha”, admite Caroline Moorehead.

“Que importam as mortes violentas de meninos de rua? No Brasil, os pobres são não pessoas [cidadãos] integrais”, apontou o artigo-denúncia de Martha Gellhorn, que foi publicado pela “London Review of Book”.

Depois da publicação, Martha Gellhorn escreveu para Mary Blume: “E isto é tudo”. A repórter não pensava em voltar a escrever.

Num exemplar do artigo, a repórter acrescentou: “Este é um documento histórico… É o último e o pior de meus artigos… Me resulta insatisfatório de todos os pontos de vista”.

Mas a incansável Martha não sabia ou não queria parar. A vida de repórter era seu oxigênio. Publicou artigos sobre viagens (inclusive sobre as piores viagens) e outros assuntos para jornais e revistas. “Porém o Brasil”, assinala Caroline Moorehead, “foi seu último e longo intento de jornalismo investigativo”. Frise-se: ela veio ao país sozinha, com a cara e a coragem. E quase não enxergava.

Martha Gellhorn, que apreciava sua fúria, escreveu: “A ira é saudável e útil. A tristeza não serve para nada”. Ela apreciava conviver com pessoas que riam com frequência e sem nenhuma contenção.

No dia 15 de fevereiro de 1998, aos 89 anos, praticamente cega e com câncer no ovário e no fígado, Martha Gellhorn se suicidou. “Em seu testamento”, conta Caroline Moorehead, “Martha pediu que seus amigos se reunissem para recordá-la”. Seu corpo foi cremado.

Não há edição brasileira da biografia. Vale publicá-la. É de alta qualidade. A história de sua visita ao Brasil está nas páginas 474, 475, 476, 477 e 478.

Meu exemplar adquiri no sebo Grinderman Libros, em Montevidéu, em dezembro de 2024. O primeiro leitor, que comprou o livro em 2012, grifou longos trechos, riscou e substituiu palavras (o que, por vezes, me irritou), contrapôs informações (corretamente, às vezes de maneira idiossincrática) e é francamente pró-Hemingway. Aqui e ali, fez discursos machistas contra Martha Gellhorn.

Para minha felicidade de leitor, desses que preferem os próprios grifos — uso canetas vermelhas (japonesas) e marca-textos vermelhos e amarelos (chineses), comprados em camelódromos e papelarias —, o uruguaio, aparentemente uruguaio, desistiu da leitura ou, se leu o livro todo, parou de fazer marcações e anotações. Quase dei um grito de alegria, copiando Martha Gellhorn.

A Editora Objetiva publicou “A Face da Guerra” (416 páginas, tradução de Paulo Andrade). É uma magnífica coletânea de reportagens “enviadas pela correspondente internacional Martha Gellhorn diretamente dos campos de batalha da Espanha, em 1937, da Segunda Guerra Mundial, do Vietnã, da Guerra dos Seis Dias, das guerras na América Central e da invasão norte-americana do Panamá, em 1990”.

Martha Gellhorn apreciava ver as coisas de perto, acontecendo, pois não tinha apreço por informações de segunda mão. A história de como cobriu a batalha da Normandia, na Segunda Guerra Mundial, mostra como era uma repórter decidida e corajosa. Os militares proibiam a presença de mulheres-correspondentes. Ela não aceitou e deu um jeitinho de ir lá e reportar os fatos.

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