Por que jornais omitiram a grandeza do poeta Affonso Romano de Sant’Anna?

Nós, repórteres e analistas, estamos fazendo um jornalismo frágil e fraturado, ao menos na área cultural. A obra de um autor menor, como Marcelo Rubens Paiva (estou ao seu lado na luta pelo esclarecimento do assassinato do pai, Rubens Paiva), mereceu mais destaque do que a morte do poeta e crítico literário Affonso Romano de Sant’Anna, na terça-feira, 4, aos 87 anos.

Li os textos que saíram no “Estado de Minas” (relata que Affonso Romano de Sant’Anna apresentou a poesia de Adélia Prado a Drummond de Andrade e a família que fosse pastor), na “Folha de S. Paulo”, em “O Globo” e em “O Estado de S. Paulo”. São, no geral, reportagens esforçadas, mas nada abrangentes.

A poesia de Affonso Romano de Sant’Anna chegou a ser mencionada pelos jornais. De leve. Nenhum soube ou quis mostrar a sua importância como bardo. Trata-se de um poeta moderníssimo, filho de tradições nacionais e globais, com raro refinamento. Sua poesia tem conexões com Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e, quem sabe, T. S. Eliot, entre outros.

Dado seu amplo conhecimento de poesia, Affonso Romano de Sant’Anna “entra” nas tradições e, aqui e ali, “escapa” delas. Escapar, no caso, não significa romper, e sim buscar um caminho próprio — acrescentando uma diferençazinha que seja. Sua poesia contém uma, digamos, fúria que não tem a de Drummond de Andrade (a fúria deste é diluída pela delicadeza verbal) e às vezes tem a de João Cabral. Este, claro, quando está mais “severino”.

Os cânones são estreitos e, por isso, muito bons poetas são esquecidos, se tornam rodapés da história da poesia e, ao longo do tempo, precisam ser “recuperados”. Fica-se com a impressão de que os espaços estão ocupados pelas poéticas de Drummond de Andrade, João Cabral de Melo, Jorge de Lima, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Augusto de Campos e Ferreira Gullar.

Por que não abrir espaço para Adélia Prado, Ana Cristina César, Mário Faustino, Régis Bonvicino (excelente bardo), Nelson Ascher, Paulo Leminski, Cacaso, Armando Freitas Filho, Angélica Freitas, Valdivino Braz, Salomão Sousa, Ronaldo Costa Fernandes, Yêda Schmaltz, entre tantos outros?

O que torna um poeta um grande poeta? Claro, sua poesia. Mas não só. Drummond de Andrade e João Cabral estabeleceram sua poesia como o suprassumo? Sim, claro. Mas a crítica foi decisiva para firmá-los como poetas locais e internacionais. O mineiro deve muito a Gilberto Mendonça Teles, a Affonso Romano de Sant’Anna e a José Guilherme Merquior, que examinaram sua obra com rara percuciência no âmbito acadêmico (Merquior era diplomata, ressalve-se), firmando sua reputação de poeta não apenas lírico, mas igualmente cerebral (e, afinal, por que poeta lírico não pode ser cerebral? Talvez porque há quem confunda lírico com romântico ou melodramático), como seu “filho” pernambucano, João Cabral.

O fato é que bons poetas, mas não tão conhecidos, precisam daquilo que, em tempos idos, chamavam de “fortuna crítica”. Uma crítica estruturada, de grande magnitude — e hoje a melhor crítica afigura-se no âmbito acadêmico —, recria os poetas, contribui para torná-los referenciais, canônicos.

Críticos como Antonio Candido, Wilson Martins, Alfredo Bosi, Davi Arrigucci Jr., Roberto Schwarz, Antonio Carlos Cecchin (João Cabral e sua poesia devem muito a este crítico), João Adolfo Hansen, Alcir Pécora (um crítico que não faz concessões), Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Kathrin Holzermayr Rosenfield, Flora Süssekind, Dirce Waltrick do Amarante, Lígia Diniz, Walnice Nogueira Galvão (grande, grande, grande), Ivan Marques (autor de uma excelente biografia de João Cabral, ainda não examinada, criticamente, em todo o seu esplendor) e Luís Augusto Fischer são decisivos na formação de leitores de poesia e prosa.

Afonso Romano de Sant’Anna era poeta, crítico literário e cronista. É provável que o fato de ser crítico, um analista perspicaz da poesia alheia, tenha “atrapalhado” a recepção crítica de sua poesia. Afinal, uma crítica não favorável poderia provocar uma resposta dura. Sua morte abre, pois, as portas para uma crítica aguçada de sua obra.

O crítico Afonso Romano de Sant’Anna, tão arguto quanto feroz — dado à polêmica —, além de corajoso, também não apareceu nos obituários, exceto num breve comentário de Mariana Ianelli.

Os irmãos Campos, Haroldo e Augusto (seguidos pelo “Quixote” Décio Pignatari), são poetas de qualidade, ainda que não a sumidade com a qual são apresentados (para mim, são melhores tradutores do que poetas), mas, durante anos — Augusto de Campos está vivo, mas menos polêmico —, arvoraram-se a dizer “quem era” e “quem não era” poeta “inventivo” e “mestre”. De acordo com o período e as “lutas”, “melhoravam” ou “pioravam” Drummond de Andrade. Manuel Bandeira e João Cabral se tornavam “grandes” quando se alinhavam — por pouco tempo, felizmente — com a ditabranda dos concretistas.

Os criadores do concretismo inseriram no cânone poético figuras menores, como Sousândrade e Pedro Kilkerry, praticamente a fórceps… talvez para reduzir a força de outros poetas, ditos conservadores, em termos estéticos. Não há dúvida de que Pagu (“recuperada” por Augusto de Campos) é boa escritora, mas não é nenhuma gigante literária. Outro equívoco, não endossado pelos Campos, esclareça-se, é tentar transformar Carolina de Jesus numa escritora do porte de uma Clarice Lispector. Ela é um fenômeno mais social, até cultural, aceitemos, porém menos literário. O populismo acadêmico vai torná-la canônica. Quem escreve isto terá de se preocupar com as milícias culturais.

Affonso Romano de Sant’Anna e Ferreira Gullar não se alinharam com os concretistas — procede que o segundo, durante algum tempo, foi companheiro de jornada — e não tinham receio de enfrentá-los. Roberto Schwarz também enfrentou Augusto de Campos com relativa “fúria”, digamos, e foi replicado com idêntica “fúria”. Os concretistas criaram uma espécie de “ditadura da última palavra” (espécie de religião laica), mas descobriram em Ferreira Gullar — poeta muito melhor do que Haroldo (muito superior ao hermano) e Augusto — um adversário à altura.

Agora, citemos o que publicaram alguns jornais sobre Affonso Romano de Sant’Anna.

1

O que disse a “Folha de S. Paulo”

A reportagem mais anódina é a da “Folha de S. Paulo” (ainda seria uma hacienda dos Campos), publicada sob o título de “Morre Affonso Romano de Sant’Anna, aos 87 anos”.

A “Folha” informa que foi casado com a escritora e tradutora Marina Colasanti, falecida em janeiro, aos 87 anos. O jornal relata que o primeiro livro de Affonso Romano Sant’Anna foi “O Desemprego do Poeta”, uma coletânea de ensaios.

O jornal da família Frias informa que a tese de doutorado de Affonso Romano Sant’Anna saiu em livro em 1972 com o título de “Drummond — O Gauche no Tempo”. Ele foi professor da PUC e escreveu crônicas no “Jornal do Brasil”, “Estado de Minas”, “Correio Braziliense” e “O Globo”.

Dos mais de 60 livros do poeta e crítico, a “Folha” menciona “Que País É Este?”, “A Mulher Madura, “O Lado Esquerdo do Meu Peito”, “Tempo de Delicadeza”, “Sísifo Desde a Montanha” e “Vestígios” (que ganhou o Prêmio Jabuti).

Pouco mais disse a “Folha”. Sua reportagem é de uma pobreza franciscana.

2

A reportagem de “O Estado de S. Paulo”

“Morre Affonso Romano de Sant’Anna, escritor e poeta brasileiro, aos 87 anos”, de “O Estado de S. Paulo”, é uma reportagem um pouco melhor do que as dos demais jornais.

De cara, o “Estadão” cita o livro “Que País É Este?” O jornal paulista transcreve um trecho do poema: “Uma coisa é um país/outra um ajuntamento.// Uma coisa é um país,/ outra um regimento.// Uma coisa é um país, outra o confinamento.// Mas já soube datas, guerras, estátuas/ usei caderno ‘Avante’/ — e desfilei de tênis para o ditador./ Vinha de um ‘berço esplêndido’ para um ‘futuro radioso’ e éramos maiores em tudo/discursando rios e pretensão.// Uma coisa é um país,/ outra um fingimento.// Uma coisa é um país/ outra um monumento.// Uma coisa é um país,/ outra o aviltamento”.

O “Estadão” nota que, além de Drummond de Andrade, Affonso Romano de Sant’Anna também examinou a poesia de Jorge de Lima e João Cabral. Na coletânea de ensaios “A Cegueira e o Saber”, o crítico analisa Flaubert, Proust, Gide e Clarice Lispector.

Affonso Romano de Sant’Anna escreveu: “Há no espaço artístico, aquilo que há mais de quarenta anos tenho chamado de luta pelo poder literário. Uma das manifestações mais sutis e alcandoradas disto está numa reminiscência monárquica (e redutora), que faz com que se pense que um poeta esteja passando o cetro a um outro. Lembrança seródia, talvez, da síndrome do ‘príncipe dos poetas’ ou do ‘poeta da corte’, como era antigamente”.

No livro “Sísifo Desde a Montanha”, de 2011, Affonso Romano Sant’Anna sugere, no dizer do crítico Moacir Amâncio, que “um livro de poemas não deve simplesmente ser uma coleção de textos aleatórios, e sim resultado de um projeto que se pode esgotar ali ou ter prosseguimento. Nem sempre o que um poema diz corresponde a uma relação”.

Moacir Amâncio acrescenta (numa resenha de 2011, publicada no “Estadão”): “Mas isso ocorre neste livro, sólido em sua temática, uma longa reflexão fragmentária sobre as variações da vida e a unicidade da morte. São interrogações, notas líricas, de um eu lírico que vibra com o que poderíamos chamar de epifanias para o bem e para o mal, com o distanciamento da ironia e do humor inteligente”.

Numa entrevista de 1980, dada ao “Estadão”, Affonso Romano de Sant’Anna fala sobre o momento eureca da descoberta do núcleo da poesia de Drummond de Andrade (que estudou detidamente na segunda metade da década de 1960): “Mas foi durante uma noite que, nos Estados Unidos, lhe veio de forma atemorizadora, numa madrugada, a compreensão da poesia de Drummond. Foi um temporal que alterou sua pressão. Precisou caminhar como louco. Naquele momento, percebeu o sistema de organização do poeta, a sua concepção de tempo. Entendeu o mundo e isso é o mais importante. Então, pode hoje dizer, à guisa de homenagem aos 80 anos do poeta: ‘O grande autor é o que te ajuda a viver’”.

3

Criticou a importância de Adalgisa Nery

Mariana Ianelli publicou no “Estadão” o artigo “Affonso Romano de Sant’Anna, que deixa legado de paixão e coragem, não temia desagradar”. Talvez seja o melhor, digamos, obituário.

O crítico, sublinha Mariana Ianelli, “não temia questionar Duchamp ou Haroldo de Campos, reavaliar Picasso ou Ezra Pound, e assim reler a história da arte e das letras desde a perspectiva de um novo século, com outros novos olhos, dentro da crítica da cultura”.

Affonso Romano de Sant’Anna enfatizava, registra Mariana Ianelli, que “o autoritarismo estético e o ideológico são siameses”.

O crítico e professor entendia “que, entre os papéis fundamentais da literatura que contribuem para uma transformação social, está o pedagógico”, sublinha Mariana Ianelli.

O crítico mineiro manteve interlocução crítica, sem subordinação, com o mestre Antonio Candido.

Mariana Ianelli nota que Affonso Romano de Sant’Anna “deu coloração brasileira à ‘teoria da carnavalização’ numa leitura de Jorge Amado”.

A exclusão da poeta Adalgisa Nery das “histórias da literatura brasileira” mereceu reparo de Affonso Romano de Sant’Anna.

O post Por que jornais omitiram a grandeza do poeta Affonso Romano de Sant’Anna? apareceu primeiro em Jornal Opção.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.