Lei da Anistia não vale para casos de desaparecimento, decide TRF-SP

A 4ª Seção do Tribunal Regional Federal da 3a Região (TRF3), em São Paulo, decidiu, por maioria, negar parcialmente um recurso movido pela defesa do legista José Manella Netto, de 85 anos. O colegiado determinou, no dia 21 de fevereiro, que ele deverá continuar a responder criminalmente pelo desaparecimento do corpo do ex-soldado do Exército Carlos Roberto Zaniratto, assassinado em 29 de junho de 1969, aos 19 anos, por agentes do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops-SP). 

Em abril de 2021, Manella Netto foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) pelos crimes de falsidade ideológica e ocultação de cadáver, pois, apesar de saber o nome da vítima, fez constar no laudo da necropsia que Zaniratto era desconhecido. O legista teria ignorado as marcas de tortura no corpo do jovem e atestou que a vítima morreu após ter sido atropelada por um ônibus na avenida Celso Garcia, na zona leste de São Paulo, confirmando a versão montada pelos policiais que o torturaram por seis dias. 

O laudo de Manella Netto, assinado em conjunto com o legista Orlando Brandão, já falecido, permitiu que o corpo de Zaniratto fosse enterrado como indigente no cemitério da Vila Formosa, em São Paulo, e nunca encontrado. 

O soldado é considerado um desaparecido político pela Comissão Nacional da Verdade. Zaniratto servia no quartel de Quitaúna, em Osasco, e havia desertado para integrar a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), organização criada pelo capitão Carlos Lamarca, que comandava aquela base do Exército.

A denúncia do MPF foi rejeitada e os procuradores recorreram ao TRF, e a 11ª turma do tribunal, composta por três desembargadores, reformou a decisão por completo, determinando o julgamento do ex-legista por falsidade ideológica e ocultação de cadáver. Entretanto, a defesa do ex-legista recorreu e a decisão foi revisada por uma seção composta por seis julgadores do mesmo tribunal. 

Na nova decisão, o TRF3 acolheu parcialmente os argumentos da defesa do acusado, mas entendeu que a Lei da Anistia, de 1979, não pode ser invocada para impedir a continuidade de processos judiciais pelo crime de ocultação de cadáver. 

A discussão é a mesma que estará na pauta no Supremo Tribunal Federal (STF), quando a corte iniciar o julgamento da repercussão geral que vai decidir se a Lei da Anistia pode ser usada para interromper processos criminais que envolvam o desaparecimento das vítimas. Esse julgamento poderá destravar o processo contra ex-agentes da repressão envolvidos na morte e no desaparecimento de casos como o de Rubens Paiva, engenheiro civil e político desaparecido após ter sido conduzido a um quartel em janeiro de 1971, no Rio de Janeiro. 

O deputado Rubens Paiva: corpo nunca foi encontrado
Discussão é a mesma em julgamento no STF e pode afetar investigações de crimes da ditadura como o caso de Rubens Paiva

Prescrição de crimes segue como x da questão

O relator do processo, desembargador Ali Mazloum, manifestou que a decisão não viola o entendimento do STF na ADPF 153, que considerou constitucional a Lei da Anistia. Segundo o desembargador, o crime de ocultação de cadáver só prescreve oito anos após a localização do corpo. 

A prescrição é o limite de tempo previsto do artigo 189 do Código Civil que define até quando uma ação judicial pode ser movida para que um direito seja assegurado – vale desde cobranças até para a punição por crimes. O entendimento de Mazloum, no caso, é que a ocultação permanece sendo praticada enquanto os restos mortais não são encontrados.

O desembargador, entretanto, rejeita a tese do MPF de que os demais crimes cometidos pela ditadura militar não prescrevem, pois seriam crimes contra a humanidade. Em seu voto, o desembargador argumenta que a prescrição desses crimes continua, pois o Brasil só transformou em lei interna os tratados internacionais assinados pelo país sobre crimes contra a humanidade depois da Lei da Anistia.

O voto de Mazloum foi acolhido integralmente pela juíza convocada Luciana Ortiz e parcialmente pelos desembargadores André Nekatschalow e Maurício Kato. Os desembargadores Fausto de Sanctis e Hélio Nogueira, que defendiam a continuidade do processo em ambas as acusações, foram vencidos. 

O MPF pode recorrer da decisão ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas o caso do desaparecimento de Zaniratto é um dos que poderão ser afetados pelo julgamento da repercussão geral da análise da aplicação da Lei da Anistia em casos de desaparecimento pelo STF.

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