Da abertura ao fechamento do Ano Cultural Martiniano José da Silva, imortal da Academia Goiana de Letras

Anos atrás, ao iniciar a faculdade de Jornalismo, me fiz repórter improvisado no evento “Academia Goiana de Letras na Calçada”, promovido pelo honrado Pres. Ubirajara Gali, cuja produção causa admiração e respeito. Iniciava ali um caminho que misturava a arte da reportagem com a paixão pela literatura, por onde viajo com livros físicos, que também estão hospedados a par dos meus artigos em ambientes imersivos de comunicação digital.

A Academia proporcionou amizades como a do imortal Martiniano José da Silva, o historiador poemático, que ecoava a mesma luta dos quilombos do Brasil Central.

Martiniano, oriundo da turma dos “Oito” da Faculdade de Direito, formada em 1966, dividiu sua trajetória com nomes como o destacado Dr Aidenor Aires, respeitado e diligente presidente da AGL, que foi Promotor de Justiça, Miguel Jorge e Coelho Vaz, cujas pegadas mostram o aporte de cada um. Entre novos amigos, intelectuais, escritores e poetas, percebi que, na modéstia da minha contribuição, encontrava a mesma ânsia pela outra metade da existência – aquela que se revela nos espaços das letras e no inconformismo ante as desigualdades sociais.

Martiniano entrou para a história como o tribuno da liberdade e da dignidade dos afrodescendentes. Em sua obra, ele mescla o rigor técnico com a sensibilidade poética, utilizando tabelas, quadros e dados que evidenciam os racismos enraizados na sociedade – sofridos “na própria carne”, como ele mesmo declara. Seu discurso ultrapassa os limites do tempo e do espaço, resgatando a história dos quilombos e denunciando a exploração dos negros, que, durante quase 400 anos, foram fundamentais na construção deste país.

Intelectuais e críticos literários encontrariam nos livros de Martiniano argumentos que ecoam na memória coletiva, como me pus a imaginar no entretecer desta página: Aidenor Aires, pelo livro Reflexões do conflito, de 1970, escrito em parceria com Gabriel Nascente, traria da sua coleção de prêmios de poesias como o Fernando Chinaglia de 1978, a mesma cabeça pendida de Martiniano ante a irresignação simbolizada na sua

“Flor decepada do mundo. Cintilância do aprendizado para o abismo. Orfeu irregressado, trouxe ainda sob as axilas cansadas o fardo do poema. Aos deuses ergo a minha libação. Aos deuses que me fizeram rouxinol, subtraio-me disperso e devolvo a canção que se volta de minha carne, das aras em cinzas, e já ninguém comove. Devolvo a todo o belo que veloz em mim brilhou sem pressa do sonho de cantar a ser completo.”

O escritor e ex-Presidente da AGL, Ubirajara Gali, diria, como um entrevistado imaginário, que Martim nasceu para “provocar a eutanásia das flores das gameleiras e dos condores que velejam nos andes do coração, tendo nos quintais dos dedos todas as sobras da vida. Para ele, Martim não é apenas um homem, é um jardim de coágulos e os seus textos, como os versos dele, são depósitos de cinzas, porque tudo nele está cremado à espera do vento.” (Adaptado)

Pois, “orquestra é o mar que ruge pela proa e o vento que nas cordas assobia” (Castro Alves).

O gênio poético de Luiz de Aquino nos emprestaria um verso de caudal a traduzir a vida de Martim, que não morreu, encantou no dizer de Rosa. Mergulhou de volta no mare magno das nossas origens, embora quisesse ser apenas riacho, pois

Rios são assim, feito a vida. Tímidos primeiro, crescentes depois.
E viram grandes quando grandes somos também
tal como grande nos parece o mundo.
Saudade de ser córrego: hospitaleiro e manso. (Poesia dos Brasis).

Nars Chaul, o Escritor goiano de destaque nacional, passou centenas de versos para composições, que terminaram interpretadas por grandes nomes da música popular brasileira, inclusive Caetano Veloso, Chitãozinho e Chororo, João Caetano, Pádua e tantos outros.
Exclamaria Chaul ao confrade Martim
Você sabe onde fica Goiás Não!
Aqui no meu coração
Ficou a saudade e a fé
Os segredos e recordações
Por entre os becos e os casarões
Os sinos da Igreja pedindo orações
Chamando as pessoas para coisas do céu
Não tem quem me veja distante das chamas
Do teu fogaréu (Post em Poesia dos Brasis)

Eurico Barbosa afirmaria que Martim era o tribuno baiano advogando a causa dos excluídos, ele Eurico que foi um tribuno nos livros e no Parlamento e que outro dia também partiu rumo ao paraíso de Ulisses, Homero e Virgílio, após ter escalado a montanha da Divina Comédia de Dante Alighieri.

Edval Lorenço falaria da desconexão entre discursos de amor à humanidade e práticas opressivas: “Quando ouço um magnata dizendo que ama a humanidade, penso logo que só se for para explorar os indivíduo”.

O Prof. Antônio Cesar Caldas veria no nome do ano cultural da Academia Goiana de Letras uma chave hermenêutica para novos enfoques que pudessem vencer os preconceitos raciais.
Luiz Sampaio lembraria que “o confrade Martiniano estará no rol daqueles que levantaram a voz em favor das igualdades raciais”.

Maria Augusta Santana, historiadora, posicionaria nosso homenageado entre os que disputam a paternidade da historiografia científica dos afrodescendentes em Goiás.

Em meio a essas reflexões, nomes como Gilberto Mendonça e Dilermando Vieira ressaltariam a poesia que se desdobra em versos marcados pela dor e pela esperança. Vieira, em Canções da Luz e Sombra, e Augusta Faro Fleury, ao interpretar os versos que ecoam diria:

“Metade de mim é manca (do peso da negritude que o outro teve)
Outra parte se arrasta (em busca da abolição)
Um tanto meu se desfaz (dos preconceitos da escuridão)
Outro tenta se firmar (porque já é tempo de a todos igualmente amar)”

Ainda, o Des. e acadêmico Ney Teles, em seu Memorial do Efêmero, destacaria que da obra de Martiniano transparece a capacidade de denunciar o preconceito de forma implacável, como na consagrada Advocacia, Engenho e Arte.

O brilhante escritor Adhemir Hamu, diria:
“São prematuros meus desconfortos.
As úlceras destes reféns dos séculos!
Quero esmagá-las no asfalto negro das cidades novas
e apagar esta mancha original do pecado da nossa própria miscigenação.”

Tais palavras se misturam à própria essência física de Martiniano, de 1,75 m de altura – herança do avoengo europeu que se casou com sua bisavó, nas cercanias de Casa Nova e Pilão Arcado – BA representando, como Bilac diria, a “flor amorosa de três raças tristes”, que se tornariam o amálgama de todos nós brasileiros, hoje alegres e dispostos a fazer uma Nação cada dia melhor, apesar dos pesares.

O escritor Adalberto de Queiroz, com a sua lavra em artigos de O Popular, nos traz “o último poema, à maneira de Manuel Bandeira”, em resposta à nossa entrevista imagética, como se dissesse que Martiniano nos deixou outro dia, mas

Assim, triste há de ser; curto e doce e terno.
Que seja breve dizendo tudo.
Que seja doce confeito de manhã eterna.
Que seja belo feito água de cachoeira.
Que a pureza o invada: morte indolor.
Da febre curado, como o que ao mar enfrenta incólume. (Cadernos de Sizenando)

Sendo a obra de Martiniano ao mesmo tempo, técnica e didática, fato é que carrega um forte teor de denúncia social. O poeta utiliza uma linguagem que transcende o mero relato factual para confrontar as máscaras da injustiça que desfilam pelas ruas. Em seu olhar, a história não é apenas contada, mas vivida – com seus dados frios e sua poesia incandescente.

Vozes como a da escritora
Leda Selma diriam que o baiano que adotou Mineiros com a amada espoca Chica é mesmo antes de tudo um forte, pois

“Nordestino é árvore que não arqueia.
Coração que não murcha.
Fibra que não se esgarça.
É cacto de mãos postas a conectar-se com o Céu
e a saciar a sede da seca.”

Em Racismo à Brasileira, obra premiada e reimpressa em diversas edições e idiomas, Martiniano reflete sobre o crime imprescritível do racismo, estabelecendo um novo patamar de reflexão sobre a história social do Brasil.

Intelectuais do meio jurídico e cultural também se pronunciariam sobre essa luta. O Des e escritor Itaney Campos questionaria qual lição de vida emergia daquele escritor que se fez mineirense de corpo e alma, respondendo poeticamente:

“Dez caravelas no alto mar – para se descobrir a liberdade plena.
Dez versos como dez gritos na escuridão.”

Assim, em cada palavra e em cada ato, Martiniano se revela não só como cronista de sua época, mas também como um símbolo da resistência e da emancipação dos negros, inspirando futuras gerações a lutar por igualdade e justiça.

Nascido em Poço da Pedra, no município de Casa Nova, Bahia, Martiniano José da Silva é filho dos lavradores Mariano José dos Santos e Maria Isabel Silva. Sua infância, marcada pelas canículas do sertão e pelas lições transmitidas por um professor rural apelidado de Mundoca, plantou as sementes de uma vida dedicada ao saber e à luta. Posteriormente, sua trajetória o conduziu à Pontifícia Universidade Católica de Goiás, onde se formou em Direito em 1966, integrando a icônica “turma dos oito”. Mais tarde, completou sua formação com um Mestrado em História Social pela Universidade Federal de Goiás, onde, em 1988, defendeu a tese sobre os quilombos do Brasil Central – um tema que se materializaria em seu livro emblemático, Quilombos do Brasil Central: violência e resistência escrava.

Ao longo de sua carreira, Martiniano exerceu múltiplos papéis: advogado, professor, secretário municipal de Cultura e Turismo de Mineiros, e vereador por dois mandatos, sempre movido por um profundo compromisso com a transformação social. Sua trajetória é marcada também pela fundação de importantes instituições culturais, como a Academia Mineirense de Letras e Artes, e pela liderança na criação do Conselho Municipal de Cultura de Mineiros e na consolidação da OAB na região do sudoeste goiano.

A obra literária de Martiniano se estende por décadas e abrange diversas áreas do saber. Entre seus títulos mais relevantes, destacam-se:
1. 1964 – A moça Que Ria Muito (romance)
2. 1966 – Poesias e Contos (Bacharéis) – em parceria com colegas que também integraram a turma dos oito
3. 1974 – Sombra dos Quilombos (ensaio) e Auto do Zumbi (teatro)
4. 1976 – Advocacia: engenho e arte (ensaio), obra premiada pela OAB
5. 1985 – Racismo à Brasileira: Raízes Históricas, que rendeu o Troféu Tokô e foi reimpresso em múltiplas edições
6. 2003 – Quilombos do Brasil Central: violência e resistência escrava
7. Mais recentemente, obras como Casa das Relíquias (2022) e Racismos na Pandemia (2023), que continuam a instigar debates e influenciar gerações contemporâneas.

Além do legado escrito, Martiniano deixou sua marca na oratória e na formação de novos intelectuais. Seu trabalho na defesa dos direitos dos afrodescendentes e na promoção da igualdade racial transformou a percepção social em Goiás e Tocantins, ampliando o debate sobre o passado e as perspectivas futuras de um país que precisa, urgentemente, reconhecer suas raízes e reparar suas injustiças.

A poesia de Martiniano não é apenas uma forma de expressão artística; ela é um instrumento de resistência. Em versos carregados de sentimento, ele denuncia os horrores do passado e celebra a força de um povo que, apesar de tantas adversidades, continua a buscar a liberdade. Em suas palavras, a dor dos quilombos e a opressão das estruturas de poder se transformam em versos que clamam por justiça e igualdade.

Como bem sintetiza um dos trechos inspiradores de sua obra, o poeta se coloca como alguém que “vê no retrovisor a curva da mola da história”, observando que, mesmo em meio às adversidades, os quilombos de resistência ao preconceito persistem. Essa dualidade – a análise fria dos fatos históricos e a paixão que colore sua escrita – torna a obra de Martiniano um verdadeiro marco no cenário cultural e acadêmico brasileiro.

Escritores como Maria Helena Chein, Iuri Rincon, Getulio Targino, Kleber Adorno, Gilberto Mendonça e Hélio Rocha do país da vida que segue, encontrariam na obra de Martiniano a inspiração para renovar a sensibilidade artística e para levantar reflexões profundas sobre a condição humana. Nas deduções dos seus textos, diversas vozes ecoam a mensagem de que o Brasil Central, apesar das cicatrizes deixadas pela escravidão e pela exploração, pode – e deve – se reerguer a partir do reconhecimento da diversidade e da valorização da negritude.

Ao olhar para trás, é impossível não reconhecer a importância de Martiniano José da Silva na construção de uma identidade cultural que abraça tanto a memória dos quilombos quanto o vigor dos ideais de liberdade e justiça. Sua trajetória, que o levou desde as humildes origens em Casa Nova, Bahia, até os píncaros do reconhecimento acadêmico e cultural em Goiás e Tocantins, é um exemplo inspirador de como a arte, a história e a advocacia podem se unir para transformar a sociedade.

O legado de Martiniano transcende os livros e os discursos de ainda outro dia na AGL – ele está presente nas instituições que fundou, nas gerações que formou e, principalmente, na luta diária contra os preconceitos e a opressão. Em um cenário político e social marcado por interesses oligárquicos que historicamente cobraram impostos e cometeram atrocidades, o poeta e historiador reafirma o valor da autonomia, da igualdade racial e da justiça social.

Através de seus versos e ensaios, Martiniano propõe uma nova forma de olhar para o passado e para o presente, evidenciando que a verdadeira emancipação passa pelo reconhecimento das raízes afro-brasileiras e pela construção de um futuro onde todas as vozes – especialmente as historicamente silenciadas – possam ser ouvidas.

A cada nova edição de suas obras, a cada seminário, palestra ou entrevista, o legado de Martiniano se perpetua, instigando o debate e alimentando a esperança de uma sociedade mais justa e plural. É nesse espírito de luta, memória e renovação que celebramos sua trajetória, certos de que sua obra continuará a iluminar os caminhos para um Brasil que reconheça e valorize a diversidade de sua história e de seu povo.

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