Tenho em mãos o livreto “Democracia e Segredo”, de Norberto Bobbio (Editora Unesp, 83 páginas, tradução de Marco Aurelio Nogueira), oferta do historiador e crítico literário Salatiel Correia. Ao capítulo que dá nome ao livro, Norberto Bobbio agrega artigos sobre o mesmo tema, escritos para os jornais “La Stampa (de Turim) e “Paese Sera” (de Roma) nas décadas de 1980 e 1990.
Norberto Bobbio (1909-2004) foi um dos principais filósofos italianos do século XX, famoso por seus escritos sobre filosofia política e do direito, defensor da democracia liberal e crítico de todas as formas de autoritarismo e das personalidades que o encarnaram, como Hitler, Mussolini e Stálin. Tem várias obras traduzidas para o português, como “Direita e Esquerda — Razões e Significados de uma Disfunção Política”. Sobre o pensador e político há o livro “Norberto Bobbio — Uma Biografia Cultural”, de Mario G. Losano.
No opúsculo, que tem muitos ensinamentos aplicáveis ao Brasil de hoje, Norberto Bobbio começa por definir a democracia como sendo “idealmente o governo do poder visível, isto é, do governo cujos atos se desenrolam em público e sob o controle da opinião pública”.
O filósofo acrescenta que a democracia, acreditada como a melhor forma de governo, ao menos idealmente, não tem cumprido, em muitos tempos e lugares (como na Itália e, sem dúvida, no Brasil), algumas de suas promessas, por não eliminar as elites do poder; não implantar o autogoverno; por manter apenas formal a igualdade legal; por não conseguir eliminar o poder invisível.
As 3 formas do poder invisível
O poder invisível, segundo o intelectual italiano, assume três formas distintas, dependendo de como se relacione com o governo, o poder de fato, o poder visível.
A primeira forma de poder invisível é a que se contrapõe ao Estado. São as organizações criminosas, como a máfia italiana e o PCC brasileiro, ou organizações terroristas.

Em segundo lugar, viriam aquelas associações secretas, formadas para explorar o Estado em benefício próprio. Norberto Bobbio cita a loja maçônica italiana Propaganda Due como exemplo. Essa organização de fachada, juntamente com a máfia italiana e figurões políticos, atuou no setor de combustíveis lesando o fisco da Itália em quantias astronômicas, entre 1976 e 1980.
No Brasil, vimos o mesmo acontecer, com o conluio de empreiteiras e figuras graúdas do governo federal, na Operação Lava-Jato, além de muitas corrupções menores, mas não desprezíveis.
Em terceiro lugar, há o poder invisível pertencente ao próprio Estado, na pessoa de seus serviços secretos, que operam naquela zona opaca a que o público não tem acesso, e que pode exacerbar nas suas funções, e em conluio com partes do poder visível também lesar o poder democrático aparente.
Norberto Bobbio cita o atentado da Praça Fontana, em Milão, em dezembro de 1969, que matou 17 pessoas, como possível ação do Estado italiano, para inculpar a oposição e justificar um endurecimento do governo. O fato nunca foi perfeitamente esclarecido. No Brasil, mesmo sem essa gravidade de perdas de vida, temos fatos de natureza semelhante.
Problemas brasileiros e a imprensa
O braço invisível do Estado, mesmo que legal, às vezes se presta a lesar a sociedade a que serve, ou deveria servir. Isso acontece quando o Estado mantém secretas, por exemplo, as despesas de presidentes e ministros nos cartões de crédito e nas viagens nos jatinhos da FAB que as elites dos três poderes usam a seu bel-prazer, abusando de um privilégio que já é, por si só, um abuso.
Ministros que têm residência fora de Brasília usam esse meio para passar os fins de semana em casa, pouco se importando com o enorme peso de cada uma dessas viagens nas costas dos humildes que pagam os impostos.
E até os há que, como a ministra da Igualdade Racial, Anielle Francisco (que se apresenta como Anielle Franco), não teve o menor pejo em requisitar uma aeronave da Força Aérea para assistir um jogo de futebol em São Paulo.
Uma tentativa de um dos poucos jornais independentes de listar essas viagens e seus usuários esbarrou no segredo governamental. “Por razões de segurança o Governo não vai informar detalhes das viagens de autoridades nos aviões da FAB” — foi a resposta.
Balela, cinismo, quase anedota, alegar perigo de segurança para uma viagem que já foi realizada. Não só no Brasil, mas com muita ênfase aqui, poderes privados cooptados servem ao governo nessa tarefa de tornar opacos certos acontecimentos que são desfavoráveis a ele.
Falo na ênfase brasileira, porque no presente, a esmagadora maioria dos meios de comunicação foi incorporado ao Estado por meio de grossas verbas, o que agrada aos proprietários desses veículos, que por sua vez deixam à solta seus articulistas de esquerda para que informem o que interessa ao governo e escamoteiem o que lhe é desfavorável. Os exemplos pululam.
Recentemente, uma deputada da oposição chamou a deputada Benedita da Silva de “Chica da Silva”. Foi um Deus nos acuda. Os movimentos que combatem o racismo e feministas — monopólio das esquerdas — fizeram um escarcéu. Mas uns pescoções dados pelo filho do presidente Lula da Silva na mulher, praticamente na mesma época, não causaram nenhum prurido nesses mesmos movimentos. Um foi manchete por dias seguidos nos principais jornais, pois interessa ao governo, e o outro foi notícia — quando foi — de canto de página.
Norberto Bobbio foi um combatente contra os extremos, de um lado e de outro. Embora conhecesse os irreparáveis malefícios que o sistema soviético trouxera ao mundo, e os denunciasse, temia que pudessem ser usados por um governo de direita como pretexto para arruinar a democracia.
O filósofo criticava a chamada Operação Gladio, montada pela CIA e pela Otan para impedir o avanço do comunismo na Guerra Fria (na Itália, principalmente), e foi um severo crítico do primeiro-ministro Silvio Berlusconi, que não considerava essencialmente democrático. Ele escreveu o livro “Contra os Novos Despotismos — Escritos Sobre o Berlusconismo”, publicado pela Editora Unesp.
Em novembro de 1990, escrevia no jornal La Stampa: “De segredo em segredo, de desvio em desvio, pode ocorrer que uma instituição criada para impedir ou obstaculizar um golpe de Estado comunista nos tenha feito de fato correr risco de enfrentar um golpe de Estado de direita”.
São muitas as semelhanças políticas entre Itália e Brasil, principalmente no que respeita envolvimento do governo federal com a corrupção e mau uso do aparato policial.
Lendo essa declaração de Norberto Bobbio em 1990, ressalto que a antonímia que reproduzo em paródia abaixo cai como uma luva no Brasil de hoje. Onde sob o argumento frágil de que se atentou contra a democracia na mudança de governo, mais precisamente na quebradeira do 8 de janeiro, faz-se uma marcha, onde a lei é posta de lado, para a barbárie esquerdista: “De segredo em segredo, de desvio em desvio, pode ocorrer que instituições criadas para impedir ou obstaculizar um suposto e não provado golpe de Estado de direita nos tenha colocado em risco — este sim, bem palpável — de enfrentar um golpe de Estado de esquerda”. Ou não é, leitor o que vivemos no momento?
O post Democracia e Transparência: golpe de direita “esconde” golpe de esquerda? apareceu primeiro em Jornal Opção.