Conheça a Nheengatu, a “língua boa”, que se tornou idioma mais falado no século XVII entre indígenas

A língua Nheengatu, conhecida como “língua boa”, carrega uma história profunda e essencial para a compreensão das interações entre os povos indígenas e os colonizadores no Brasil e ainda atualmente é falada por cerca de 30 mil indígenas. Derivada do Tupi, língua originalmente falada pelas comunidades indígenas da costa brasileira, o Nheengatu se tornou uma língua franca, ou seja, uma língua comum de comunicação, especialmente na região Amazônica a partir do século XVII.

Aline da Cruz, professora no Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena da Universidade Federal de Goiás (UFG), tem se dedicado ao estudo e à revitalização dessa língua. Seu trabalho tem sido fundamental para documentar e preservar o Nheengatu, um patrimônio cultural dos povos da Amazônia.

O Nheengatu, que significa “língua boa” — de “nhe” (língua) e “ngatu” (boa) — possui uma origem histórica marcada por um processo de adaptação. “A língua Nheengatu é a língua boa, é a língua que foi utilizada por povos na Amazônia desde o século XVII, desde 1616, quando foi fundada Belém, até hoje é usada no estado do Amazonas”, afirma Aline da Cruz.

Aline da Cruz, professora linguista Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena da UFG | Foto: Guilherme Alves

A língua surgiu a partir do Tupi, que era falado pelos povos indígenas da costa brasileira. No entanto, o contato com os portugueses, que utilizaram o Tupi como meio de comunicação e catequese, levou à evolução da língua, que passou a ser usada de maneira diferente ao longo do tempo.

Durante o século XIX, o Nheengatu foi a língua mais falada em regiões como Manaus, ao longo dos rios Amazonas, Tapajós, Solimões e Negro. A língua foi essencial para que as diversas etnias indígenas e os colonizadores conseguissem se comunicar. Contudo, diversos fatores históricos, como a Cabanagem e a Guerra do Paraguai, causaram a morte de muitos falantes ou forçaram a migração de comunidades inteiras.

Esses eventos, além do aumento do uso do português durante o ciclo da borracha, impactaram a disseminação do Nheengatu. Aline lembra que “Com o tempo, o Nheengatu se espalhou, mas muitos falantes morreram ou foram levados para outros locais, como durante a guerra do Paraguai e a Cabanagem”.

Atualmente, a língua Nheengatu ainda é falada por cerca de 8 mil pessoas, principalmente entre os povos Baré, Baníwa e Uerequena, no Alto Rio Negro. Essa região é uma das últimas onde o Nheengatu se mantém como uma língua viva e em uso cotidiano. Aline da Cruz tem se dedicado a estudar e preservar a língua, destacando a importância de entender como ela é falada hoje nas comunidades indígenas.

“Em 2006, comecei a estudar o Nheengatu para a minha dissertação de doutorado, já que havia pouca documentação sobre como o Nheengatu é falado hoje e quem ainda fala essa língua”, explica Aline. Sua pesquisa visa não apenas documentar o Nheengatu, mas também compreender seu papel nas comunidades indígenas atuais.

O trabalho de Aline envolveu um intenso processo de pesquisa de campo, realizado em 2007, no Alto Rio Negro. Foi nesse ambiente que ela teve a oportunidade de conviver diretamente com os falantes da língua, como anciãos e professores indígenas, para registrar como o Nheengatu é utilizado. Essa experiência de imersão foi essencial para a criação de uma gramática da língua e para o entendimento das particularidades linguísticas de cada comunidade.

“Fui para o Alto Rio Negro, onde tive a oportunidade de ser professora dos povos Baré, Baníwa e Uerequena e aprender sobre o Nheengatu diretamente com os anciãos”, compartilha Aline. O contato direto com as comunidades foi fundamental para que ela pudesse entender as nuances do Nheengatu em seu contexto real.

Hoje, o Nheengatu está vivendo um processo de revitalização em várias regiões, especialmente no Alto Rio Negro. Vários povos, além dos Baré, Baníwa e Uerequena, estão envolvidos em movimentos para ensinar a língua às novas gerações e ampliar o uso do Nheengatu em suas comunidades. Aline observa que “Nos últimos anos, há um movimento de retomada da língua Nheengatu, especialmente em regiões próximas aos centros urbanos, como em São Gabriel da Cachoeira e até em Manaus.”

A revitalização também está acontecendo em outras partes do Brasil, como no Nordeste, onde grupos indígenas, como os Tapebas no Ceará, estão se aproximando da língua Nheengatu como forma de valorizar suas raízes culturais e linguísticas.

Esse movimento de revitalização não se limita apenas ao ensino da língua, mas também envolve a preservação das práticas culturais e identitárias dos povos que falam o Nheengatu. A língua está profundamente ligada a várias manifestações culturais, como as tradições mitológicas e o artesanato, especialmente a cestaria dos povos Baníwa, que é feita de forma colorida e carrega significados importantes para a identidade do povo.

Para Aline, a língua não é apenas uma ferramenta de comunicação, mas também um símbolo da resistência e da preservação cultural indígena. “A língua Nheengatu é a língua boa, que carrega toda a história e a cultura dos povos da Amazônia”, afirma ela, destacando a importância da língua como um elo entre o passado e o presente dessas comunidades.

Com a pressão do português e a globalização, a língua Nheengatu enfrenta desafios significativos para se manter viva. Contudo, a contínua documentação e os esforços de revitalização nas comunidades indígenas têm garantido a transmissão dessa língua para as futuras gerações.

O Nheengatu, com seu passado complexo e sua importância cultural, continua a ser um símbolo da resistência indígena. Aline destaca a importância de manter esse patrimônio vivo: “A língua Nheengatu é uma chave essencial para entender a história e as tradições dos povos da Amazônia.” Esse trabalho coletivo de preservação e revitalização é fundamental para garantir que o Nheengatu continue a ser falado e ensinado, não apenas como uma língua, mas como um legado cultural imensurável.

Em julho de 2023, houve o lançamento da tradução da Constituição de 1988 em Nheengatu. A Carta Magna já estava disponível em Inglês e Espanhol, mas levou 35 anos para ser traduzida para uma língua nativa. Acesse o documento em seguida.

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A língua no povo Baré

Em entrevista ao Jornal Opção Ana Cláudia Marques Tomás, ou Suri, como é conhecida em sua língua materna, é uma liderança indígena do povo Baré, oriunda da Terra Indígena Enixique, localizada no Alto e Médio Rio Negro, na Amazônia. Com uma trajetória dedicada à educação e à preservação cultural, ela hoje é mestranda em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Além disso, Ana Cláudia é pedagoga, artesã e uma defensora ativa das tradições de seu povo, com um olhar atento para o futuro das gerações mais jovens. Ela explica: “Nosso povo foi muito violentado. Tiraram de nós algo que fortalecia ainda mais nossa identidade, que era nossa língua.” Essa perda cultural, de acordo com ela, é um reflexo dos impactos da colonização.

Suri ou Ana Cláudia Marques Tomás, pedagoga, ativista e liderança indígena do povo Baré | Foto: Arquivo pessoal

A língua Nheengatu, falada atualmente pelos Baré, não é, no entanto, a língua original desse povo. “Nosso povo Baré fala a língua Nheengatu, que foi criada pelos padres carmelitas, mas nossa língua original era a língua Baré do tronco aruaque”, explica Ana Cláudia.

A imposição do Nheengatu pelos colonizadores ocorreu durante o processo de catequese, quando a língua foi modificada para facilitar a comunicação entre diferentes povos indígenas e os missionários. Essa imposição resultou na substituição da língua tradicional do povo Baré, e, assim, o Nheengatu passou a ser falado por várias gerações, embora com o impacto negativo de perder a riqueza do idioma original.

Para Ana Cláudia, a língua Nheengatu se tornou um símbolo de resistência, mas também de uma dor histórica. Ela acredita que a preservação da língua é fundamental para a manutenção da identidade cultural do povo Baré. “A luta pela terra e pela moradia no Parque das Tribos é um exemplo de como fomos organizados, e todo esse trabalho gerou visibilidade para nossa comunidade”, afirma, destacando a importância da conquista do Parque das Tribos, em Manaus, como um marco na luta por direitos territoriais e culturais dos povos indígenas.

Além de sua atuação como liderança no Parque das Tribos, Ana Cláudia tem se dedicado à preservação cultural por meio de várias iniciativas, como a fundação do Espaço Cultural Indígena Uka Mbuesara Wakenai Anumarehit. Esse espaço serve como ponto de encontro para promover as tradições culturais dos povos indígenas e fortalecer a identidade de sua comunidade.

“Eu sou artesã e faço minhas iniciativas pela causa indígena, tanto pela educação como pelo território que a gente fez com que a gente veio a liderar o Parque das Tribos”, explica ela, ressaltando sua atuação no campo da arte e educação, além de seu envolvimento na defesa do território.

A educação indígena é uma das bandeiras de Ana Cláudia, que acredita ser essencial formar as novas gerações dentro de uma perspectiva que resgate a cultura e a língua de seu povo. Em 2014, ela iniciou um trabalho de alfabetização e educação cultural com crianças no Parque das Tribos, utilizando métodos criativos para o ensino da língua Nheengatu.

“Eu fui me organizando com o pouco que sabia da língua, e com isso comecei a ensinar as crianças do Parque das Tribos, utilizando artes cênicas como método de ensino”, conta Ana Cláudia. Esse método lúdico e envolvente tem se mostrado eficaz na transmissão dos saberes tradicionais de seu povo.

Atualmente, Ana Cláudia se dedica ao desenvolvimento de sua dissertação de mestrado, focada na criação de materiais didáticos para o ensino da língua Nheengatu. Ela observa a escassez de recursos pedagógicos específicos para o ensino do idioma e busca suprir essa lacuna. “Não podemos esquecer da importância de manter nossa língua viva.

Se não preservarmos, nossa língua e cultura vão desaparecer”, alerta ela. O objetivo de sua pesquisa é elaborar métodos e materiais que possam ser usados para ensinar a língua Nheengatu às novas gerações, especialmente em áreas como o Parque das Tribos, levando em conta as variações regionais e a necessidade de uma abordagem sistemática.

A preservação da língua, para Ana Cláudia, é um aspecto fundamental da identidade indígena. Ela reforça que, para um indígena se reconhecer plenamente, não basta apenas adotar os costumes visíveis, como os grafismos e adornos, mas é crucial manter a língua viva. “Se você se reconhece como indígena, além de adotar os grafismos, adornos e práticas culturais, o mais importante é manter a língua, pois ela é o que realmente fortalece nossa identidade”, afirma. Para ela, a língua é a chave para manter as tradições vivas e garantir que as futuras gerações possam se conectar com suas raízes.

Em suas reflexões, Ana Cláudia também aponta os desafios enfrentados pelos povos indígenas, incluindo o povo Baré, que, ao longo do tempo, sofreram a pressão de outras etnias, além da discriminação dentro de seu próprio contexto. Ela acredita que a preservação da língua é um ato de resistência contra as forças que tentam apagar as identidades indígenas.

“A educação é um pilar fundamental, mas a preservação cultural também. Por isso, começamos a trabalhar a alfabetização e o fortalecimento da cultura indígena com as crianças no Parque das Tribos”, destaca. A luta pela preservação da língua Nheengatu, portanto, é também uma luta pela preservação de toda a cultura e identidade de seu povo.

Ana Cláudia conclui suas reflexões com um apelo urgente à preservação das línguas indígenas. “A luta pela preservação da língua é uma luta pela preservação de nossa identidade. Se não conseguimos manter nossa língua viva, estaremos perdendo nossa alma cultural”, enfatiza ela.

Para Ana Cláudia, o ensino e a valorização da língua Nheengatu são essenciais para garantir que as novas gerações de indígenas mantenham o vínculo com suas tradições e cultura, assegurando assim a continuidade das identidades indígenas diante dos desafios contemporâneos.

Nheengatu no povo Baniwa

Melvino Fontes Olímpico, conhecido em sua língua nativa como Dzaimaka, é indígena do povo Baniwa, nascido em Assunção do Rio Içana, no município de São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas. Além de ser uma importante liderança de sua comunidade, ele é coordenador do Departamento de Educação Escolar Indígena (DEEI), vinculado à FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro).

Melvino tem dedicado sua vida à promoção da educação escolar indígena e à preservação das línguas de seu povo, com ênfase na língua Nheengatu, falada por diversas etnias da região. “Somos, no total, de 24 povos indígenas no Alto Rio Negro e temos aproximadamente 18 línguas ainda faladas no nosso território”, afirma ele, destacando a rica diversidade linguística da região.

liderança indígena e coord. do DEEI/FOIRN
Dzaimaka ou Melvino Fontes Olimpio, liderança indígena e coord. do DEEI/FOIRN | Foto: Redes Sociais

A língua Nheengatu, uma das mais proeminentes entre os povos do Alto Rio Negro, tem uma história marcada por mudanças significativas, especialmente durante o processo de colonização. No início do século 20, a chegada dos missionários salesianos e o impacto da colonização forçaram a adoção do Nheengatu como língua comum entre os povos indígenas e os colonizadores.

Melvino explica que essa imposição resultou na diminuição do uso da língua Baniwa, sua língua ancestral. “Foi uma imposição que a gente sofreu pelos missionários e pelos regatões, que causaram a perda da nossa língua Baniwa e nos forçaram a adotar o Nheengatu, que era a língua geral”, conta. Com o tempo, a língua Nheengatu passou a ser a principal forma de comunicação, mas isso também trouxe consequências para a identidade cultural dos povos locais.

Apesar desse processo de imposição linguística, a língua Nheengatu resistiu graças à prática oral. Para Melvino, a transmissão de geração para geração, principalmente por meio das tradições orais nas aldeias, tem sido crucial para a preservação da língua. “A nossa língua foi ameaçada de desaparecimento com a chegada dos missionários, mas nossa língua materna sobreviveu graças à oralidade, repassada de geração em geração”, afirma ele. A oralidade, portanto, tornou-se o pilar que manteve a língua viva, apesar das adversidades impostas pelo contato com a cultura externa.

No entanto, Melvino observa que a língua Nheengatu enfrenta desafios contínuos, especialmente com a urbanização e o deslocamento das populações para os centros urbanos. “Hoje, a maior parte das crianças não consegue mais falar a língua indígena da sua família. Isso é resultado de um contexto urbano que não favorece o aprendizado da língua materna”, aponta ele, refletindo sobre como as novas gerações têm perdido o contato com suas línguas originárias. A migração para áreas urbanas tem sido uma das principais causas dessa desconexão, dificultando o ensino da língua nas comunidades e nas escolas.

Como coordenador do DEEI/FOIRN, Melvino tem trabalhado para integrar a educação escolar indígena ao sistema de ensino formal, respeitando as especificidades culturais e linguísticas das comunidades. O DEEI tem se esforçado para desenvolver projetos que promovam a educação intercultural, com o objetivo de fortalecer as línguas indígenas dentro do currículo escolar.

Contudo, Melvino reconhece que o sistema educacional brasileiro ainda tem dificuldades em atender às necessidades educacionais dos povos indígenas. “Nosso modelo de ensino nas escolas indígenas deveria ser um que respeitasse a diversidade linguística e cultural, mas, infelizmente, o sistema nacional ainda não consegue reconhecer a educação escolar indígena como deveria”, critica ele. A falta de materiais didáticos adequados e o desajuste entre a educação indígena e o currículo nacional são problemas persistentes.

Além de seus esforços dentro do DEEI, Melvino também tem buscado parcerias com universidades e outras organizações para promover soluções para os desafios educacionais e linguísticos enfrentados pelos povos indígenas. Ele destaca a importância dessas colaborações para desenvolver práticas educacionais que respeitem as culturas locais.

“A língua Nheengatu é a primeira língua a ser ensinada nas escolas indígenas, mas a falta de materiais didáticos adequados e apoio pedagógico ainda é um grande desafio”, afirma. Essas parcerias são vistas como fundamentais para garantir que o ensino da língua Nheengatu, assim como o fortalecimento das culturas indígenas, seja devidamente valorizado e promovido.

A falta de políticas públicas eficazes e o reconhecimento insuficiente da educação escolar indígena ainda são obstáculos significativos para Melvino e para muitos outros líderes indígenas. Ele defende que a educação escolar indígena precisa ser tratada com a prioridade que merece, para garantir a preservação das línguas e a continuidade das culturas dos povos indígenas.

“É fundamental que a educação escolar indígena seja tratada como prioridade, porque, sem ela, os povos indígenas correm o risco de perder suas línguas e suas identidades culturais”, afirma Melvino, reforçando a urgência da implementação de políticas públicas que garantam o direito à educação e à preservação cultural.

Melvino conclui sua reflexão sobre o papel da educação escolar indígena como uma ferramenta essencial de resistência e preservação cultural. Ele acredita que é preciso um compromisso sério por parte dos governantes para que as próximas gerações indígenas possam aprender suas línguas e fortalecer suas identidades.

“A educação não pode ser vista apenas como uma questão de igualdade, mas também como um meio de resistência e preservação cultural”, afirma ele, apelando para que as autoridades públicas deem a devida atenção à educação escolar indígena, reconhecendo sua importância para a sobrevivência e o fortalecimento das línguas e culturas indígenas no Brasil.

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