Haitianos de cidade atacada por Trump se preparam para o futuro

Poucos minutos após o início do discurso de posse de Donald Trump, quando ele começou a falar sobre imigração, Yvena Jean François pegou um caderno e uma caneta na gaveta de sua mesa.

“Temos um governo que não consegue administrar nem mesmo uma crise doméstica simples… Ele falha em proteger nossos magníficos cidadãos americanos que cumprem as leis, mas oferece abrigo e proteção a criminosos perigosos, muitos que saíram de prisões e instituições de saúde mental, que entraram ilegalmente em nosso país vindos de todas as partes do mundo”, disse Trump, repetindo, sem provas, uma acusação frequente em sua campanha de 2024.

Jean François anotou um pensamento no caderno que estava em seu colo, com as palavras “COISAS DIVERTIDAS” impressas na capa colorida.

Trump continuou: “Vou declarar emergência nacional na fronteira sul. Todas as entradas ilegais serão imediatamente bloqueadas, e começaremos o processo de devolver milhões e milhões de estrangeiros criminosos aos lugares de onde vieram”.

Jean François fez mais anotações.

Quando Trump terminou de falar, Jean François revisou os principais pontos que planejava compartilhar no próximo episódio do podcast que ela apresenta em seu estúdio caseiro em Springfield, no estado de Ohio. A cidade de aproximadamente 60 mil habitantes se tornou conhecida nacionalmente durante a campanha presidencial de 2024, devido à disseminação de desinformação e mentiras sobre seus moradores haitianos.

“As pessoas com status ilegal serão as primeiras a serem deportadas em massa”, disse ela.

As palavras exatas usadas por Trump eram importantes para Jean François, que também faz parte da comunidade haitiana de Springfield. Ela ouviu termos como “criminosos perigosos”, “entrando ilegalmente”, “prisões e instituições de saúde mental” e “estrangeiros criminosos” – e começou a se acalmar. “O presidente disse que as primeiras pessoas que vão deportar são os criminosos que já têm ordens de deportação,” observou Jean François. E isso, segundo ela, não se aplica a ela nem à maioria dos haitianos que conhece na cidade.

Assim como Jean François, os imigrantes haitianos de Springfield foram atraídos para a cidade pelo potencial de empregos bem remunerados, em um lugar que tinha mais vagas do que trabalhadores disponíveis para preenchê-las. Muitos desses migrantes têm o chamado Status de Proteção Temporária (TPS, na sigla em inglês), que lhes dá o direito de viver e trabalhar legalmente nos Estados Unidos e os protege contra deportação por um período determinado. Eles chegaram a Springfield enquanto o país emergia do pior período da pandemia de covid-19, vindos de estados como Flórida e Nova York, que abrigam as maiores comunidades de haitianos-americanos no país.

Estabelecido em 1990, o TPS está disponível para imigrantes provenientes de países que enfrentam circunstâncias excepcionais, como desastres ambientais, conflitos armados e guerra civil. O TPS foi aprovado para haitianos em 2010, após o terremoto que devastou grande parte do país. O governo de Joe Biden estendeu o programa no ano passado até fevereiro de 2026, em meio a uma guerra de gangues que cortou o acesso a necessidades básicas, como comida e água potável, para grande parte do Haiti.

Os haitianos também estão aptos a solicitar a humanitarian parole (permissão humanitária), outro status legal temporário disponível para cidadãos de determinados países e aprovado caso a caso. Alguns optam por pedir asilo, que, quando concedido, permite que permaneçam nos EUA indefinidamente, se tornem residentes legais permanentes e, às vezes, cidadãos. Diferentemente do asilo, nem o TPS nem a humanitarian parole oferecem caminho para a cidadania, o que significa que haitianos e outros imigrantes vivendo no país sob essas designações não podem votar.

O censo de 2020 apontou que a população de Springfield era composta por 68% de brancos, 18% de negros e 5% de latinos, mas, segundo algumas estimativas, os haitianos agora representam até um quarto da população da cidade. Muitos, como Jean François, chegaram após o censo, atraídos pelas oportunidades. Enquanto seu irmão gêmeo se mudou para a cidade de Chicago, ela foi para Springfield. Fotógrafa e jornalista de radiodifusão no Haiti, Jean François conseguiu um emprego em um depósito da Amazon e economizou dinheiro para abrir um estúdio em sua casa; em breve irá transferi-lo para um novo espaço profissional.

Jean François se vê como uma parte importante do renascimento desta cidade pós-industrial, tipicamente americana, onde os recém-chegados haitianos abriram pelo menos dez novos estabelecimentos – restaurantes, mercados e um food truck. Os criadores de Os Simpsons ambientaram o programa em uma Springfield fictícia porque existem pelo menos 34 estados com uma cidade chamada Springfield, todas de alguma forma representativas de “qualquer lugar nos EUA”. 

Na Springfield do estado de Ohio, a população encolheu por décadas à medida que fábricas de automóveis e equipamentos agrícolas fecharam e os empregos desapareceram. Entre 1999 e 2014, a renda média da cidade caiu 27% – mais do que qualquer outra área metropolitana do país, de acordo com uma análise do Pew Research Center. Em 2012, o instituto de pesquisa Gallup relatou que Springfield era a cidade mais infeliz dos EUA.

Há pouco mais de uma década, autoridades municipais e líderes empresariais lançaram uma campanha para atrair empregadores dos setores de manufatura, seguros e saúde, tentando revitalizar a economia estagnada. Logo, começaram a ver resultados. Entre fevereiro de 2020 e março de 2024, Springfield registrou a segunda maior taxa de crescimento de empregos de Ohio, atrás apenas de Cincinnati, cidade muito maior, segundo o Federal Reserve Bank de Cleveland. 

No entanto, o rápido influxo de haitianos, embora tenha sido uma bênção para os empregadores que precisavam de mão de obra, também trouxe seu próprio conjunto de problemas. Ficou mais difícil e mais caro achar casas para alugar, as salas de aula ficaram lotadas e o tempo de espera para consultas médicas ou mesmo para atendimento em lojas de automotores aumentou.

Em julho, durante a campanha para as eleições de 2024, JD Vance, então senador republicano por Ohio e candidato a vice-presidente na chapa de Donald Trump, perguntou ao presidente do Federal Reserve (o Banco Central do país), Jerome Powell, durante uma audiência no comitê bancário: “Qual o papel da imigração ilegal no aumento dos custos de moradia?”.

Vance continuou: “Nas minhas conversas com pessoas em Springfield, vi que a questão não é apenas a habitação”. O prefeito de Springfield, Rob Rue, e o gerente municipal, Bryan Heck, ambos republicanos, alimentaram polêmica quando apareceram no programa Fox & Friends para discutir as políticas de imigração do governo Biden. “Isso está preparando cidades como Springfield para o fracasso”, disse Heck, pedindo apoio adicional do governo federal. Enquanto ele falava, imagens de uma cena caótica de um lugar a milhares de quilômetros de distância – a fronteira entre os EUA e o México – eram exibidas pela emissora.

Poucos dias depois, Trump confirmou Vance como seu vice na chapa republicana, colocando Springfield – e sua comunidade haitiana – no centro dos holofotes de uma campanha presidencial cada vez mais acalorada e de um debate nacional sobre quem merece permanecer no país.

Trump, cujas posições punitivistas e restritivas sobre imigração impulsionaram sua ascensão política, espalhou desinformação nas redes sociais afirmando que imigrantes haitianos estavam comendo os animais de estimação das pessoas em Springfield.

No único debate presidencial com Kamala Harris, sua adversária democrata, ele repetiu as alegações. Vance fez o mesmo, apesar de as autoridades da cidade afirmarem que não havia evidências para sustentar tais acusações. Trump prometeu deportar imigrantes haitianos com status legal. Durante uma coletiva de imprensa em setembro de 2024, ele declarou: “Eles destruíram o lugar”.

Grupos neonazistas e supremacistas brancos amplificaram as mentiras sobre o consumo de animais de estimação e invadiram Springfield. Houve ameaças de bomba. Empregadores de trabalhadores haitianos foram assediados. A mulher que inicialmente espalhou o boato se retratou, horrorizada com o que havia causado. Ainda assim, a chapa Trump-Vance continuou explorando a fábula de Springfield para reforçar suas posições sobre imigração. “Se eu tiver que criar histórias para que a mídia dos EUA preste atenção no sofrimento do nosso povo, eu vou fazer isso”, disse Vance à CNN.

Autoridades republicanas locais e estaduais, como Rue e Heck, tentaram conter o caos. O governador de Ohio, Mike DeWine, nascido em Springfield, implorou: “Todos precisam abaixar o tom da retórica”. Enquanto isso, os moradores se uniram em apoio aos estabelecimentos haitianos, e as forças de segurança locais começaram a descrever os haitianos como mais propensos a serem vítimas do que perpetradores de crimes. A anteriormente informal Aliança da Comunidade Haitiana ganhou status de organização legal sem fins lucrativos.

Trump venceu no condado de Clark, cuja capital é Springfield, com mais de 64% dos votos.

Dois meses depois da vitória de Trump, alguns haitianos deixaram a cidade, segundo entrevistas com moradores e organizações comunitárias da região. Eles retornaram para Nova York ou Flórida, ou se mudaram para cidades maiores em Ohio, como Dayton ou Columbus, onde eram menos notados – mas onde não tinham o mesmo senso de comunidade que criaram em Springfield.

Jean François conhece alguns que tentaram a vida em outros lugares, mas acabaram voltando. Ela enxerga poucos motivos para sair. As mesmas políticas de imigração da administração Trump se aplicariam em qualquer lugar do país, porque “na Flórida ou em Nova York você ainda está nos EUA”, disse ela. Seu objetivo é continuar usando seu podcast para incentivar outros haitianos a manter a calma, permanecer em Springfield e “fazer o melhor para a cidade”.

“Eu conheço Springfield, eu amo Springfield. Fiquem, fiquem aqui comigo”, ela disse ao The 19th em seu estúdio caseiro. “Como o presidente disse, ‘Make America Great Again’. Façam Springfield grande.”

Horas depois, Trump encerrou o programa de humanitarian parole que a administração Biden havia lançado, permitindo que mais de meio milhão de migrantes de quatro países permanecessem legalmente nos EUA por um período de dois anos. Um desses países era o Haiti.

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