A promiscuidade de Trump 2.0 com os techbilionários pode não dar certo

Por Maurício Rands*

As manchetes dos primeiros dias são preocupantes. “Elon Musk (Tesla e X), Mark Zuckerberg (Meta), Tim Cook (Apple), Sundar Pichai (Google), Jeff Bezzos (Amazon), Sam Altman (OpenAi), bilionários da tecnologia, marcaram presença na posse de Donald Trump”. “Joseph Stiglitz alerta contra o excessivo poder dos tecno-oligarcas dos EUA”. “Novo governo retira os EUA do Acordo de Paris e da OMC”. “Trump revoga medidas pró-energia limpa e de combate às mudanças climáticas”. “1.500 condenados pela tentativa de golpe de 6/01/2021 são libertados após perdão de Trump”. “Governo Trump instaurou a censura nos sites federais, removendo expressões como gay, lésbica, bissexual, LGBTQ”. “Trump proíbe mulheres trans em prisões femininas”. “Trump ameaça tomar o canal do Panamá e a Groelândia”.

Ufa! Um espetáculo de horror. De intransigência. De chauvinismo. De supremacismo branco. De falso nacionalismo. De menosprezo por tudo que não seja ele próprio. De populismo de uma ultradireita autoritária sem qualquer pudor. De promiscuidade com os bilionários. Assim começou o governo Trump 2.0. Um “decretaço” voltado para fingir que resolve os ressentimentos de tantos americanos brancos, empobrecidos, perdedores da globalização e que se sentem desempoderados porque mulheres, negros e imigrantes vinham conquistando direitos de cidadania e de igualdade. Dezenas de “executive orders”, decretos às vezes inconstitucionais. Outras, meras bravatas. Alguns desses absurdos não passam de tática primária de botar o bode na sala para depois negociar. Muitos retrocessos.

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Mas nem tudo é céu de brigadeiro para o autocrata. Os freios e contrapesos ainda existem nos EUA. Já algumas medidas judiciais iniciam a resistência. Como no caso da proibição de registro de cidadania dos filhos de imigrantes que não estejam regularizados. Ademais, o resultado eleitoral não foi tão acachapante quanto se anunciou. Na Câmara, os republicanos mantiveram as mesmas 220 cadeiras, contra 215 dos democratas. No Senado, os republicanos recuperaram o controle com 53 das 100 cadeiras na nova legislatura. Mas não conseguiram os 60 senadores para impedir o chamado “filibuster” (obstrução). Por isso, os democratas poderão bloquear iniciativas republicanas no Senado mesmo sem terem maioria. Os republicanos agora controlam 27 governos estaduais. Os democratas, 23. No voto popular, Donald Trump obteve 50,2% e Kamala Harris, 48,2%. Vê-se, pois, que a maioria republicana em 2024 ficou distante das vitórias esmagadoras de Franklin D. Roosevelt (1932, 1936, 1940, 1944), Lyndon B. Johnson (1964) e Barak Obama (2008). Este último teve 52,9% do voto popular (contra 45,7% de McCain), com 60 cadeiras no Senado e 257 na Câmara.

Também por outros motivos, nem tudo é negativo no novo cenário. Em todo o mundo, muita gente se opõe aos efeitos deletérios de Donald Trump para democracia, o meio-ambiente, o multilaterismo e para a redução das discriminações e desigualdades. Diante das propostas radicais que ele acaba de anunciar, duas hipóteses se descortinam. A primeira é que ele consiga viabilizar, por exemplo, as ameaças de deportação de milhões de trabalhadores imigrantes e de imposição de tarifas de importação de produtos da China, México e União Europeia. Difícil que essas duas medidas não provoquem inflação. E o protesto virá nas urnas, que já estarão abertas daqui a dois anos. Caso em que ele poderá perder o controle da Câmara.

Uma hipótese oposta pode resultar no mesmo efeito de desgaste e redução de seu poder político. Seria o caso em que as suas ameaças não sejam implementadas. Com o consequente descrédito e desgaste perante sua base de apoio que levou a sério seus excessos ultranacionalistas, supremacistas e contrários à cultura woke. A resposta pode ser a mesma daqui a dois anos, impondo-lhe um Congresso com maioria oposicionista. Acrescente-se o efeito caneta-seca. Como não pode ser reeleito, a força da sua caneta é inversamente proporcional ao tempo do mandato transcorrido. E nem se imagine que ele poderá mudar a Constituição para ser reeleito. Ele não tem e não terá os 2/3 de quórum em cada uma das casas do Congresso. Nem muito menos o quórum de ratificação de 3/4 dos parlamentos dos 50 estados da federação, como impõe o art. 5º da Constituição. Quanto às ameaças ao comércio mundial com imposição de tarifas aos chineses, mexicanos, canadenses e europeus, também não se imagine que esses países não podem retaliar. Existe até uma expressão para a natureza recíproca das retaliações tarifárias (“tit-for-tat tariffs”).

E, finalmente, a promiscuidade do presidente do país mais forte do mundo com os bilionários das “techgiants” pode produzir o resultado oposto. A parte saudável e lúcida da opinião pública mundial pode finalmente resolver agir para regulamentar o excessivo poder concentrado das grandes plataformas. Os que ingenuamente ainda acreditam que elas são instrumentos da livre-expressão podem finalmente perder suas ilusões. Triste é ver tantos brasileiros patriotas, ideologizados, não perceberem que aplaudir Trump contraria interesses de todos os povos do planeta, inclusive o brasileiro.

*Advogado formado pela FDR da UFPE, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford

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