Repórter torturado no mesmo quartel de Rubens Paiva quase perdeu o olho

“Sufocante” foi a palavra escolhida por Álvaro Caldas, repórter torturado no mesmo quartel onde Rubens Paiva morreu, para descrever o seu retorno ao local.

Aos 85 anos, ele comemora o sucesso do filme Ainda Estou Aqui e sente que o país está esquecendo, pouco a pouco, o que foi a ditadura militar. Sua principal contribuição para registrar as suas memórias como vítima do regime é o livro “Tirando o Capuz”, publicado em 1981. Na obra, Caldas relata os horrores que viveu enquanto preso político.

Álvaro já foi duas vezes ao cinema assistir ao filme estrelado por Fernanda Torres. “Levei uma porrada. O filme é muito bom”, diz. Ele vê com bons olhos o sucesso nas bilheterias e destaca que a obra reforça a lembrança da ditadura militar brasileira. “Feito que nós nunca conseguimos. Nós, que fomos presos, que fizemos parte dessa história, nunca conseguimos alcançar esse público.”

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“É um filme que traz um episódio marcante na época da ditadura, que sequestrou Rubens Paiva em casa, mostrando também parte da tortura e o desaparecimento dele. E fez isso focado na mulher, na Eunice, a grande personagem do filme. Isso fez com que tivesse uma dimensão dramática imensa e alcançasse um público extraordinário”

‘Iam me matar’

Caldas se viu no personagem em vários momentos do filme: quando a família, transportada com uma sacola na cabeça para impedir que soubessem para onde iam, foi presa em celas, mas sobretudo quando Rubens Paiva sumiu, deixando uma esposa desesperada. O futuro foi diferente para os dois: após mais de dois meses no quartel do Exército, Álvaro Caldas foi solto.

“O que aconteceu comigo foi semelhante ao Rubens Paiva. Vieram aqui na minha casa, me levaram e desapareceram comigo. Eu não estava preso. Minha mulher, Sueli, meus pais, amigos, jornalistas, todos procuraram e nenhum lugar reconhecia que eu estava preso. Era um sinal evidente que iam me matar”

Nunca esquecer

Mesmo que o jornalista tentasse esquecer o que viveu naquela cela, não conseguiria. O seu corpo ainda tem marcas da ditadura: após agressões, a visão do olho esquerdo ficou danificada. O terror psicológico fez com que ele tenha crises toda vez que o elevador chega ao seu andar. “Sinto que alguém está vindo me buscar”, afirma.

“Todo mundo ficou com sequela, porque é uma coisa inimaginável. A minha segunda prisão foi em casa. Aqui, de onde estou falando com você. Se é que podemos chamar de prisão —na verdade foi um sequestro, muito similar ao que aconteceu com o Rubens Paiva. Eu me lembro do barulho que o elevador fez quando eles estavam chegando. [Desde então] toda vez que o elevador chega no meu andar, eu costumo lembrar; são coisas que ficam guardadas no fundo.”

“Outras pessoas tiveram traumas muito mais violentos, sequelas físicas. Não conseguem andar direito. Muitos se tornaram alcoolistas após esses traumas.”

“É um momento de muita dor, de muita humilhação. O primeiro passo da tortura você sabe qual é? A nudez, você entra na sala, eles mandam você se despir. Nu, você fica muito mais fragilizado diante deles, que são cinco ou seis.”

“A cineasta Lucia Murat relembrou como ela foi torturada: nua, deram choques em sua vagina. Colocaram bichos, baratas, em cima do seu corpo nu. Foi assim com várias moças; com as mulheres a tortura era ainda pior.”

Ele quer que quartel vire um museu

Caldas pede que o quartel se torne um local de memória tão valorizado quanto outros museus do Rio de Janeiro. “Nós fizemos um ato, sábado agora, lá na porta do quartel do Exército. Eu estava lá e contei o que vivi”, diz o repórter. Uma das suas queixas é que o local continue funcionando normalmente. “O quartel está lá, visível. Todo mundo passa na pracinha em frente sem ter a menor noção do que aconteceu lá dentro. Isso é uma coisa que me repugna.”

“Já estive nesse quartel quatro vezes. Sou um recordista nisso. Foram duas vezes como prisioneiro. Entrei encapuzado, por uma porta lateral que dava direto no prédio onde eram realizadas as sessões de tortura.”

“O quartel é imenso, ocupa quase um quarteirão. Dentro do quartel há prédios onde aconteciam as torturas, várias salas, e as celas onde ficávamos confinados… As outras duas vezes em que entrei no quartel foi como membro da Comissão Estadual da Verdade [do Rio de Janeiro], da qual eu fiz parte.”

“Da primeira vez [que ele foi como sobrevivente], não conseguimos entrar. Ficamos ali, na antessala. Fomos impedidos pelo comandante e por Bolsonaro, que estava lá. Ele ainda era deputado. Ele ficou na porta tentando tumultuar a entrada. Ele [Bolsonaro] defende a tortura, dizendo que devia ter matado todo mundo. Ele foi para lá para tumultuar mesmo. Nesse dia nós não conseguimos entrar.”

“Na segunda [quarta] vez, eu fui com parlamentares, tinha pessoal da Comissão da Verdade. Eu era o único preso que lá tinha estado. Então, guiei a visita das outras pessoas pelos locais de tortura. Imagine como foi forte para mim: mostrar para as pessoas a cela em que eu estava, mostrar o local onde eu levei choque elétrico. A sala onde fui colocado no pau de arara. E nessa sala também, que era a mesma das torturas, muitos tinham morrido. Nessa mesma sala foi assassinado o Mário Alves, em janeiro de 1970, e, em 71, lá esteve o Rubens Paiva, que foi assassinado lá e desapareceu.”

“O local da tortura era um prédio de dois andares, o nome desse prédio é PIC (Pelotão de Investigações Criminais). Ele foi completamente moldado para ser esse local da tortura. Tinha um corredor na entrada e umas três salas. Uma dessas salas era preparada para essas torturas. Tinha lá cavaletes para fazer o pau de arara, e também haviam máquinas de dar choque.”

Esperança de que investigações avancem

Pela primeira vez, Caldas viu um general ser preso por atentar contra a democracia. O repórter afirma que a postura que os brasileiros têm assumido contra a impunidade de quem age contra o Estado o enche de esperança. “Não podemos repetir o passado”, afirma.

“Bolsonaro esteve quase a ponto de se eleger num cenário que é como uma continuidade da ditadura. Ele é um amigo, um participante daquela ditadura, um defensor dela. Um admirador do Ustra, um dos maiores torturadores. Nós precisamos ter muito cuidado, temos que zelar pela nossa democracia.”

“Que essas pessoas sejam punidas, porque antes eles foram anistiados. Por causa da lei que os anistiou, até hoje nenhum deles foi punido. O ministro Dino agora está abrindo uma perspectiva nova: de considerar desaparecimento um crime imprescritível. Ou seja, os familiares de mais de 100 desaparecidos políticos podem pedir a reabertura das investigações.”

Do UOL.

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