Trago notícias da Argentina, e elas não são boas

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Tal qual o deputado Rubens Paiva, retratado no atual sucesso do cinema Ainda Estou Aqui, o escritor e jornalista Haroldo Pedro Conti foi sequestrado nos anos 70 por militares da ditadura em sua casa e está desaparecido desde então. Há indícios de que foi levado ao terrível centro de detenção clandestina El Vesubio, que funcionava em Buenos Aires, Argentina, sob o comando do Primeiro Corpo do Exército. Os restos mortais de Conti, a exemplo do caso Paiva e de outros cerca de 209 desaparecidos durante a ditadura brasileira, jamais foram localizados.

A trágica história de Conti, um intelectual argentino de esquerda que se recusou a deixar o seu país após o golpe militar de 1976, inspirou o batismo, já após a redemocratização, de um centro cultural na antiga Escola de Mecânica da Armada, a ESMA, um dos piores lugares das torturas e assassinatos cometidos pela repressão da ditadura argentina (1976-1983). Em 2008, o Centro Cultural da Memória na ex-ESMA foi inaugurado com o nome de Haroldo Conti.

Mais de 40 anos após o fim da ditadura argentina, contudo, esse legado está sob ameaça. E parte dos argentinos reage. Na última semana do ano passado, milhares de pessoas foram à ESMA protestar contra uma série de medidas tomadas pelo governo de Javier Milei, o presidente da direita que tomou posse no começo de 2024 – de folga no fim de ano, acompanhei a manifestação.

  • Sede da antiga Escola de Mecânica da Armada, local de torturas e desaparecimentos em Buenos Aires, tornado, nos anos 2000, centro cultural e de memória sobre a ditadura argentina
  • Sede da antiga Escola de Mecânica da Armada, local de torturas e desaparecimentos em Buenos Aires, tornado, nos anos 2000, centro cultural e de memória sobre a ditadura argentina
  • Sede da antiga Escola de Mecânica da Armada, local de torturas e desaparecimentos em Buenos Aires, tornado, nos anos 2000, centro cultural e de memória sobre a ditadura argentina

Segundo os organizadores do “abraço solidário”, os cortes de servidores e de recursos colocam em risco o funcionamento do centro Haroldo Conti e de uma série de atividades de memória, atividades culturais e de pesquisa histórica desenvolvidas há anos no enorme complexo de 17 hectares da ex-ESMA, formado por 31 prédios interligados por caminhos arborizados. Além do centro cultural, há dois museus, espaços de memória e direito, arquivos, sedes de associações de familiares de mortos e desaparecidos, até um escritório da Defensoria Pública, tudo abrigado sob o guarda-chuva da Secretaria de Direitos Humanos, vinculada ao Ministério da Justiça.

O aspecto bucólico da ex-ESMA esconde seu passado terrível e, agora, os perigos representados pela gestão Milei. A associação dos servidores colou folhetos e faixas nas paredes para denunciar os cortes promovidos por Milei. Durante a campanha eleitoral, ele prometeu passar e está passando uma “motosserra” no setor público. “Aqui há demissões massivas e trabalhadores em luta”, diz uma faixa.

“O Ministério da Justiça comunicou a eliminação da maioria dos contratos de trabalho, sob o marco da Lei de Contrato de Trabalho, deste organismo para dezembro de 2024, assim como a redução dos salários dos trabalhadores do local. Para além do tecnicismo relativo às modalidades de contratação do Ministério da Justiça, está claro que este é um ataque sem precedentes aos trabalhadores, aos seus salários e às políticas [públicas] que deles dependem. Estamos falando de medidas que atingem diretamente mais de 5.000 trabalhadores de todo o Ministério da Justiça e mais de 600 desta Secretaria [de Direitos Humanos]”, diz um folheto apresentado aos visitantes do centro cultural.

Segundo o texto, “dezenas de trabalhadores foram demitidos arbitrariamente, 21 desta Secretaria, todos com mais de dez anos de antiguidade”.

No domingo (5), o secretário de Direitos Humanos, Alberto Baños, negou à imprensa argentina que a intenção do governo seja “fechar” o complexo da ex-ESMA, disse que vai agregar mais dois órgãos ao local, mas reconheceu uma suspensão das atividades do centro Conti. Alegou que isso é necessário para que ocorra uma “reestruturação”. Disse que “não dava para fazer tudo isso com gente na porta. O sindicato entrando nos prédios etc.”

Cinco dias depois da manifestação, a organização de direitos humanos Comissão Provincial da Memória (CMP) denunciou que o ato na ex-ESMA foi alvo de “tarefa ilegal de inteligência”. Segundo a ONG, policiais sem identificação “circulavam entre os manifestantes e realizavam comunicações telefônicas” e “interagiam com os agentes da Polícia da Cidade que se encontravam no lugar”. De acordo com o jornal Pagina 12, “esse tipo de tarefas secretas destinadas a reunir informação política está proibida pelas leis vigentes”.

De acordo com a CPM, a prática se tornou rotina desde que Milei tomou posse na Presidência. A entidade disse ter detectado que, em 34 das 60 manifestações realizadas no país ao longo de 2024, ocorreram “práticas associadas a inteligência ilegal”.

O protesto na ex-ESMA ocorreu, em uma amarga ironia, no mesmo dia em que as Mães da Praça de Maio anunciaram à imprensa a localização do 138º neto sequestrado durante a ditadura. Esforços da Argentina de não apagar seu passado são a razão de existir de um centro de memória e cultura como o Haroldo Conti.

Os turistas que visitam a antiga ESMA são informados de que, de 5 mil presos que passaram pela unidade militar, apenas 200 sobreviveram. Parte deles foi executada nos chamados “vôos da morte”, quando os presos eram encapuzados, colocados num avião e atirados no Oceano Atlântico ou num rio. Em meados de 2023, um dos aviões usados para o extermínio, um turboélice Short Skyvan SC-7 da Prefeitura Naval da Argentina, foi repatriado dos Estados Unidos pelo governo argentino e hoje está em exposição no pátio da antiga ESMA.

Reunir informações sobre os crimes da ditadura é uma “pedagogia da memória”, conforme aparece no texto de apresentação pregado na parede logo no início da visita à antiga ESMA. “Desenvolvemos propostas nas quais crianças, adolescentes e jovens podem se reconhecer como sujeitos de direito. […] Transformar em um espaço aberto à comunidade o que antes era um lugar emblemático de privação, exclusão e morte é o maior compromisso e desafio para contribuir para a construção da memória, verdade e Justiça.”

Os ataques à memória sobre os crimes da ditadura denunciados pelas entidades de direitos humanos se somam a notícias preocupantes no campo dos direitos humanos na Argentina. As mais citadas são o aumento do desemprego e da pobreza que, segundo a BBC na Argentina, foi o maior nos últimos 20 anos. No primeiro semestre de 2024, havia mais argentinos pobres (53%) do que não pobres, com 25 milhões de habitantes vivendo abaixo da linha da pobreza. Reagindo a essas estatísticas, Milei e seus seguidores dizem que ele já pegou uma economia em frangalhos, que está arrumando a casa e que houve uma redução da pobreza no último trimestre do ano.

“O Milei está fazendo um monte de mudanças que, a longo prazo, até poderão ser positivas [para a economia], mas a custa do quê? A custa de pessoas que não tem o que comer. A pobreza aumentou demais. Tem uns 5 milhões de pobres a mais”, diz o motorista do Uber enquanto dirige pelas ruas da Recoleta, um bairro caro de Buenos Aires.

A divisão da Argentina no campo da política se reflete no noticiário da imprensa. Enquanto a maior parte das emissoras claramente apoia as medidas pró-mercado de Milei, outros (poucos) meios, como o canal de televisão por assinatura C5N, faz uma cobertura crítica com chamadas como “tudo custa o dobro”, “Milei fez: o salário mínimo mais baixo em duas décadas”, “Um ano de gestão de pura motosserra: tarifaços, queda de renda e recessão” e “Os grandes perdedores: 40 mil trabalhadores”.

Ainda que em meio a essas extremas dificuldades financeiras, a Argentina não deixa de se preocupar com o tema dos crimes da ditadura e da violência política. Nesse ponto o Brasil tem muito o que aprender. Não há, por aqui, nada parecido com o complexo da antiga ESMA ou o Museu da Memória e dos Direitos Humanos em Santiago do Chile.

A recente premiação da atriz Fernanda Torres no Globo de Ouro parece que renovou, no Brasil, o interesse pelo tema da ditadura. O presidente Lula, que até o momento não instalou uma Comissão Nacional da Verdade Indígena nem recebeu os familiares de mortos e desaparecidos brasileiros, conforme escrevi em março passado aqui na Agência Pública, escreveu que a atriz é “orgulho do Brasil”.

Mas é esperar vida nova para um ano novo. Que, em 2025, as histórias de todas as Eunices, que infelizmente são muitas no Brasil, recebam a atenção que o enorme talento de uma atriz como Fernanda, de um cineasta como Walter Salles e de um escritor como o filho de Eunice e Rubens Paiva, Marcelo, felizmente proporcionou.

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