Quem não é “um apanhador de desperdícios” não tem olhos para os passarinhos

Sou um poeta de meia-pataca. Nem sei por que ganhei o prêmio Bolsa de Publicação Hugo de Carvalho Ramos. Estivesse eu na banca julgadora, “Poema na Folha da Amendoeira” jamais teria abocanhado o prêmio. Vacilaram feio. Enfim sou um mequetrefe no ofício poético. Há, no entanto, porém a se considerar a meu favor: não estou entre os poetas que vivem apenas na clausura de seu quarto (sem janela) lendo outros poetas e assim tecendo a sua poesia. Isso num ritual de galos tecendo a manhã: um apanhando o canto do outro e jogando o seu para frente. O certo é que é lendo outros poetas que o poeta encontra a sua voz.

Essa história de apanhar o canto de outro me leva ao livro “A Angústia da Influência”, do professor e crítico literário estadunidense Harold Bloom, já do outro lado da vida. A obra diz que “o morto (no caso, o canto apanhado de outro poeta) pode ou não retornar”, e que isso deve ocorrer “paradoxalmente nunca pela imitação”. Afinal a imitação é “xing ling”. Bloom ressalta que apenas “os sucessores mais talentosos” são capazes dessa “agônica apropriação cometida contra os poderosos precursores”. Há, no canto do bom poeta, (algo que almejo ser) uma pena das asas de cada poeta que ele leu.

Leio o canto de João Cabral de Melo Neto no meu quarto, mas nele há janela, que fica aberta. Inclusive foi por ela que, algum tempo atrás, entrou um vagalume. Não tive nenhuma resposta dele ao lhe perguntar como conseguira chegar ao quarto andar, visto que seu voo é baixo. Sua luz intermitente me trouxe o descontentamento do sol no soneto “Círculo Vicioso”. Ele questionou: “Por que não nasci eu um simples vaga-lume?”. O inseto, por sua vez, querendo ser uma estrela; esta almejando ser a lua, que almejava ser o sol. Esse soneto machadiano é atemporal, pois o descontentamento das pessoas consigo mesmas é uma pedra constante no caminho da humanidade. As redes sociais aumentaram esse desejo de ser o outro (exibindo uma felicidade que não tem). A alegria das selfies é uma alegria sem luz. É um riso forjado para ficar bem na foto.

Além da janela aberta, faço colheita de poesia no passeio dos meus olhos pelas coisas, sobretudo as dentro da natureza, a qual é minha fonte maior de inspiração, e nela encontro nexo existencial. Minhas erupções poéticas são mais intensas nos versos que colho dentro da natureza. Certa vez, observando um sabiá-laranjeira cantando dentro do Bosque dos Buritis, apanhei, em seu canto, que “os pássaros são intérpretes dos poemas de Deus”.

Andorinhas nos fios elétricos
| Foto: Sinésio Dioliveira

Mesmo seu canto sendo um só, sua leitura não exige dicionário. Basta apenas ser “aparelhado para gostar de passarinho” e ter “abundância de ser feliz por isso”. Quem não é “um apanhador de desperdícios” não tem olhos para os passarinhos. Gosto de ver a intimidade dos urubus com céu quando estão numa altitude bem elevada. Deixam se levar pelas correntes de ar sem necessidade de bater as asas. O beija-flor, por sua vez, não é uma ave necrófoga, porém não consegue realizar um voo tão alto como o urubu, que chega alcançar até 4 mil metros de altura.

Um bando de andorinhas que vi nos fios elétricos me soprou que “os pássaros são notas musicais de uma canção celeste e que eles poesiam o céu”. Quando vejo uma árvore sozinha na imensidão gerada pelas correntes imensas e grossas dos tratadores, logo me vem que “solidão árvore é falta de passarinho”.

Árvore sozinha na imensidão
| Foto: Sinésio Dioliveira

Enfim, os poetas somos pássaros no canto. Santos Dumont o foi nas asas.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza

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