Aniversário da morte de Nelson Rodrigues, o contraditório reacionário

Em 21/12/2024, tivemos os 44 anos do falecimento de Nelson Rodrigues, o recifense que os cariocas querem naturalizar como do Rio de Janeiro. Não digo isso por gosto da frase ou provocação. Em mais de uma oportunidade, temos visto a frase “Nelson Rodrigues, dramaturgo carioca”. A justificativa para o deslocamento da identidade é o seu teatro, que retrataria a sociedade do Rio de Janeiro. Acredito que isso geraria uma boa discussão na Bodega de Véio, no Recife. Mas vamos a um ou dois argumentos.

O recifense Nelson Rodrigues, desde o nascimento em uma sexta-feira 23 de agosto de 1912, atravessou muitas vidas e rostos. E contradições das mais diversas. Entre muitas, falam sempre de Nelson como um escritor do Rio pelos temas e formação.

De passagem, olhemos a referência mais ressaltada de Nelson Rodrigues, a obra teatral. Ora, o seu teatro exigiria um estudo além da frase exterior no palco, além da paisagem, do óbvio ululante, como ele diria. Penso que o seu teatro vem de certo e tenebroso Pernambuco. Aqueles delírios patológicos dos personagens, aqueles conflitos profundos que sobem à cena, fazem parte da repressão sexual da casa-grande de Pernambuco. Das sinhazinhas e senhores escravocratas vêm aqueles incestos, paixões impossíveis dentro do lar mais suburbano. Aqueles devaneios à margem da sala de visitas não são bem a escolha de um escritor carioca à procura da originalidade. Vêm antes de uma herança espiritual de senhores de engenho que se espraiou pela gente do Recife. De um ponto de vista factual e do ser, a opressão dos engenhos acompanhou a família pernambucana de Nelson Rodrigues até o Rio de Janeiro. Ou como ele próprio confessou, numa entrevista ao psicanalista e escritor Hélio Pellegrino:

“Eu tenho uma experiência, aliás, já citei isso, a minha primeira experiência erótica é anterior à minha memória. Eu não me lembro de nada e este fato só foi referido muito posteriormente. Um dia apareceu lá em casa uma santa senhora, vizinha, mãe de uma menina de uns quatro anos, para dizer que qualquer filho de minha mãe poderia entrar na casa dela, menos eu. O negócio teve um tal toque de inocência e de pureza que eu não me lembro de nada. De vez em quando faço um esforço, começo a escavar na memória e não tenho a menor noção do que eu teria feito para justificar a ira da santa senhora. O meu ambiente familiar era, sob este aspecto erótico, de um grande rigor. Eu disse o meu primeiro palavrão aos doze anos de idade.”

Isso posto, mal posto, já se vê, porque somos breves, passemos a seu reacionarismo. Depois do golpe de 64, em muitas oportunidades defendeu amigos comunistas, inclusive João Saldanha. Mas nos textos que publicava na imprensa durante a ditadura, eram impagáveis as suas caricaturas contra ídolos da esquerda brasileira. Sobre Mao Tsé-Tung, ele escreveu que o grande chinês não poderia nadar, porque tinha uma barriga insubmersível. Sobre Dom Hélder Câmara, dizia que o extraordinário arcebispo se defendia na batina, mas queria mesmo era vê-lo na praia de Ipanema com short de bolinhas. Sobre Antônio Callado, repetia ao infinito que o romancista e jornalista era o único inglês do mundo real. E haja gozações contra os estudantes que militavam contra a ditadura. Mas isso foi até o dia em que prenderam o seu filho Nelsinho como terrorista, que foi torturado como era hábito dos militares na época. Mais adiante, o genial teatrólogo e cronista se integrou à luta pela Anistia.

E na obra, o mais importante da sua permanência, o teatro de Nelson Rodrigues destrói o reacionarismo declarado pelo autor. Nada nele fala aos valores proclamados pela santa família brasileira, moral, costumes, rigor da religião, tão ao gosto da direita nacional. Pelo contrário, os incestos e traumas familiares pululam nas tragédias. Em Beijo no Asfalto, um homem beija a boca de outro e nisso se faz o maior escândalo na imprensa marrom retratada na peça. Mas prefiro ir agora às suas crônicas revolucionárias sobre o futebol brasileiro. Retiro alguns trechos da homenagem a ele no Dicionário Amoroso do Recife.

Para mim, Nelson Rodrigues foi, de longe, o maior e melhor e excelso gênio da literatura de futebol no Brasil. Disse tudo? Não, disse menos. Quero dizer: o sonho de todo escritor, o de ser lido pelas massas, discutido por elas, sem cair um só milímetro da sua dignidade artística, o sonho de escrever para todos, mas sem as quedas demagógicas de baixar o nível para falar aos trabalhadores, que nem servem ao povo nem à literatura, esse possível um dia Nelson Rodrigues conseguiu. Disse tudo? Menos ainda, porque devo dizer: não conheço, na literatura mundial, alguém que tenha sido tão magnífico quanto Nelson Rodrigues na crônica esportiva.

Se pensam que me engano, olhem e amaciem na boca feito fruta rara o que Nelson Rodrigues escreveu sobre um jogo de Pelé, antes de começar a Copa do Mundo de 1958. Para não dizê-lo um profeta, devo dizer: a sensibilidade, a genial arte de um escritor descobriu e revelou um fenômeno:

“Depois do jogo América x Santos seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura que o meu confrade Laurence chama de ‘o Domingos da Guia do ataque’. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — 17 anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de 40, custo a crer que alguém possa ter 17 anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo como uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se ‘Imperador Jones’, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: – a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola, e dribla um adversário é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônia. Já lhe perguntaram: — Quem é o maior meia do mundo?. Ele respondeu com a ênfase das certezas eternas: — Eu. Insistiram: — Qual é o maior ponta do mundo? E Pelé: — Eu. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé… Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente de que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas-de-pau”.

Isso se deu em uma crônica de março de 1958. Se a epifania de Pelé antes do reconhecimento universal não causar espanto, olhem, mastiguem lento e com calma o que Nelson escreveu sobre Garrincha:

“Nos acrobatas chineses o que existe é o esforço, é a técnica, é o virtuosismo, ao passo que Garrincha é puro instinto. Possui uma riqueza instintiva que lhe dá absoluto destaque sobre os demais. Até Deus, lá do alto, há de admirar-se e há de concluir: — ‘Esse Garrincha é o maior!’. O ‘seu’ Mané não trata a bola a pontapés como fazem os outros. Não. Ele cultiva a bola, como se fosse uma orquídea rara”.

Cultivar a bola como uma orquídea rara — isso já deixou de ser futebol e penetrou na delicadeza da arte, no mesmo passo em que vemos a fina e macia pétala que se toca com a percepção da vida fugaz. Mas é uma bola. É uma crônica. Nesta altura eu me sinto um escritor absolutamente desnecessário. O que disser parecerá acento circunflexo sobre o céu azul. Pode? Ser leitor dessas crônicas é tão agradável, que nossa única transmissão possível é copiá-la em trechos, porque o tempo urgente não permite a cópia inteira, o que seria um serviço de utilidade pública e educação estética. É irresistível.

Na crônica “O craque sem idade”: “A bola tem um instinto clarividente e infalível que a faz encontrar e acompanhar o verdadeiro craque. Foi o que aconteceu: — a pelota não largou Zizinho, a pelota o farejava e seguia com uma fidelidade de cadelinha ao seu dono. (Sim, amigos: — há na bola uma alma de cachorra.). No fim de certo tempo, tínhamos a ilusão de que só Zizinho jogava. Deixara de ser um espetáculo de 22 homens, mais o juiz e os bandeirinhas. Zizinho triturava os outros ou, ainda, Zizinho afundava os outros numa sombra irremediável. Eis o fato: — a partida foi um show pessoal e intransferível”.

Essa crônica esportiva, de gênero e talento que os espanhóis diriam ser esquisito, e aqui recupero pelos sentidos de muito bom e raro, esse texto de Nelson a gente absorve com um prazer e com um sorriso, que posto na face não se desgruda mais. Como é que ele conseguia escrever tão bem, no meio de uma redação barulhenta, sob os tiros de mais de 40 metralhadoras das máquinas de escrever, e nuvens de cigarros, e gritos, e piadas, e explosões de raiva e confusão? Penso que seria como fazer amor em meio às arquibancadas de um estádio durante um Fla x Flu. Vocês já veem que a gente lê Nelson Rodrigues e fica meio contaminado pelo espírito dele.

“Os passes de Didi! São precisos, exatos, irretocáveis como um soneto antigo. Direi mais, se me permitem a comparação: — Didi é a mãe dos pernas-de-pau. Quantos companheiros vivem, e sobrevivem, à sua sombra? Ele não depende de ninguém e quantos dependem dele? Ao lado de Didi, o perna-de-pau já o é muito menos.”

Ele — Nelson Rodrigues em seus craques — arranca humor e graça em frases que guardam sempre os mesmos recursos, imagens, mas ainda assim surpreendem. Ele, na crônica, escrevia à semelhança de Garrincha, que driblava para um só lado, e todos sabiam qual, mas ainda assim eram surpreendidos. Nelson usa sempre o exagero, as expressões mais despudoradas, melodramáticas, truques de circo na hipérbole, com o maior despudor e cinismo, mas ainda assim o leitor era, é driblado, assim como os marcadores de Garrincha. Que encanto! Com a diferença que a gente é driblado, mas não se frustra, porque enche o peito da gente de felicidade.

“Olhem Pelé, examinem suas fotografias e caiam das nuvens. É, de fato, um menino, um garoto. Se quisesse entrar num filme da Brigitte Bardot, seria barrado, seria enxotado. Mas reparem: é um gênio indubitável. Digo e repito: gênio. Pelé podia virar-se para Miguel Ângelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los, com íntima efusão: ‘Como vai, colega?’”

Na verdade, mesmo sem o seu teatro, Nelson Rodrigues seria imortal, se permitem mais um acento circunflexo no mar de suas crônicas. Dele pode ser dito o mesmo que ele escreveu sobre o romancista José Lins do Rego:

“Morto e, no entanto, parece mais vivo do que muitos que andam por aí, que circulam, que batem nas nossas costas e contam piadas. Não resta dúvida que ‘morrer’ significa, em última análise, um pouco de vocação. Já falei nos vivos tão pouco militantes que temos vontade de lhes enviar coroas ou de lhes atirar na cara a última pá de cal. Esses têm, sim, a vocação da morte. Fomos, todos, enterrá-lo no chão muito doce de São João Batista. Mas é como se não existisse a mínima relação entre o funeral e Zé Lins, entre o caixão e o grande romancista.”

Esse era o “reacionário”. Pode? É claro que não. Ele era um anarquista, quero crer. Mas revolucionário na forma e na visão rara, porque ninguém escreveu sobre futebol com tanta graça e gênio quanto Nelson Rodrigues.

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