Quando os homens sonham. A grande mostra do Surrealismo em Paris

PARIS — A frase “Alice (a do País das Maravilhas), Sigmund Freud e Salvador Dalí entram em um museu” é o início de:

1- Um sonho;

2- Uma piada de tiozão;

3- Um texto sobre a exposição que comemora os 100 anos do Surrealismo no Pompidou, em Paris.

Se você respondeu 3, acertou.

O centenário do Surrealismo instigou diversas homenagens e exposições ao redor do globo este ano. Nada mais justo que a maior de todas fosse aqui, onde a história do movimento começou.

Em cartaz no Centre Pompidou até 13 de janeiro (ver abaixo suas próximas paradas), Surréalisme é dividida em 14 salas e tem formato de labirinto/espiral. Estão expostos cerca de 350 trabalhos multidisciplinares assinados por aproximadamente 130 artistas, para além de um podcast com excertos de obras escritas. 

Estão aqui, é claro, algumas produções dos baluartes do Surrealismo, como André Breton, René Magritte, Salvador Dali e Max Ernst. 

E também suas interações com artistas que inspiraram o movimento, como Lewis Carroll, o autor de Alice no País das Maravilhas, e Sigmund Freud, o maior estudioso do campo dos sonhos.

Não obstante, um dos grandes objetivos da curadoria, realizada 22 anos após a última mostra sobre o movimento no Pompidou, foi expandir o cânone do Surrealismo.  

Isso foi feito em termos temporais, retratando o movimento de 1924 a 1969, e não só o auge até 1940; em termos de gênero, valorizando a contribuição de mulheres na construção da identidade surrealista; e em termos geográficos, dando espaço para as ramificações do estilo que surgiram ao redor do globo.

“Foram anos de pesquisa e exposições que transformaram a imagem do Surrealismo,” Didier Ottinger, o co-curador da exposição e vice-diretor do museu, disse ao Brazil Journal. “Do Japão à Austrália, do Brasil ao Canadá, surgiram movimentos diretamente ligados ao grupo parisiense ou inspirados por seus valores, como a ‘Anfropofagia’ liderada por Oswald de Andrade no Brasil.”

Remedios Varo, Ithell Colquhoun, Tatsuo Ikeda e Rufino Tamayo são alguns dos ‘novos’ nomes em destaque na exposição, que também busca apresentar o Surrealismo às gerações mais novas.

Ottinger me disse que a quantidade de jovens circulando pela mostra dá a entender que o objetivo foi alcançado – e que o movimento é a própria expressão da juventude. 

Isso porque o Surrealismo simboliza uma fase em que o homem é verdadeiramente livre, pois ainda não ‘possui um papel dentro das engrenagens da sociedade’, o que é personificado nos trabalhos precoces de alguns dos musos de Breton e companhia, como Arthur Rimbaud, Isidore Ducasse e Gisèle Prassinos.

Assim como o início formal do movimento, a exposição começa no Manifesto Surrealista (1924) de Breton. O manuscrito de 21 páginas é exposto no centro de uma sala redonda coberta de monitores que exibem um vídeo introdutório, enquanto a voz do autor replicada por Inteligência Artificial (IA) narra seu próprio texto. 

Depois de beber na fonte do Dadaísmo, Breton evoca uma nova forma de enxergar e desenvolver arte no manifesto, em que a imaginação e os sonhos fluem sem quaisquer controles – racional, estético ou moral. 

A escrita automática, por exemplo, era uma das ferramentas utilizadas pelo bando, desenvolvida com o objetivo de alcançar a produção de textos baseados no inconsciente de seus autores. 

Para manter esse estado de abstração ao longo dos anos, os surrealistas trataram de explorar, ressignificar e/ou reforçar diversos temas – e é justamente assim que a exposição se divide. 

Além das duplas Freud/sonhos e Carroll/Alice, que estão entre os pontos altos, há uma vastidão no repertório dos surrealistas que fica evidente em cada sala. 

Por um lado, a adoração etérea de figuras mitológicas como ‘quimera’ – uma besta com aparência híbrida de pelo menos dois animais – e ‘melusina’, uma criatura meio mulher, meio serpente. Do outro, as entregas mais mundanas ao erotismo e a uma identidade política anticolonial e antifascista, exacerbada em tempos de Segunda Guerra.

Chama atenção Família (1956), de Tatsuo Ikeda. Em desenho bestial de uma criatura deformada, o artista rememora os horrores da guerra e das experiências nucleares da época.

A cada sala, o visitante é exposto a uma nova fonte de inspirações e estímulos, como é o caso da obsoleta teoria científica da alquimia que embalou o Segundo Manifesto do Surrealismo (1929). Para os surrealistas, a pseudociência se tornou um “meio para a coexistência do conhecimento e da intuição, da ciência e da poesia,” segundo a curadoria.

Além de Max Ernst, nomes como Remedios Varo e Jorge Camacho brilham nessa sala, chamada Pedra Filosofal. Destaque para Mingau Estelar (1958), em que a pintora espanhola retrata uma pessoa alimentando uma lua aprisionada com um ‘mingau de estrelas’.

Já no fim do labirinto, na sala Cosmos, há tempo para o visitante experimentar uma versão ainda onírica, mas mais consternada do Surrealismo, na esteira de Prolegómenos a um Terceiro Manifesto do Surrealismo ou não (1942)

No texto, em viagens e em obras subsequentes, o grupo questiona os rumos da civilização e o papel central da humanidade no universo, buscando retomar relação menos predatória com a Terra. Mais atual impossível. Mulheres cercadas pelo voo de um pássaro (1941), de Joan Miró, é uma das últimas telas que o visitante vê antes de voltar ao mundo real.

Depois de Paris, haverá outras versões da exposição. Em Madrid (Fundación MAPFRE), com especial atenção aos espanhóis Dalí, Miró e Buñuel; em Hamburgo (Kunsthalle of Hambourg), onde serão enfatizados os laços entre o Surrealismo e o Romantismo Alemão; e no Philadelphia Museum of Art, com foco nos desdobramentos surrealistas nas Américas, especialmente a Latina.

Na imagem acima, “Sonho Causado Pelo Voo de uma Abelha ao Redor de Uma Romã um Segundo Antes de Acordar” (Salvador Dalí, 1944).

Matheus Prado

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