Desconfio do seu amor

Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Xeque na Democracia, enviada toda segunda-feira, 12h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui.

Moro longe, passo longas horas no carro, e não é sempre que encerro a travessia chorando. Mas naquela tarde eu estava comprometida com minha promessa de ano novo, reencontrar-me com o Brasil. Algo aconteceu em meu coração na virada para a década de 2010 – algo aconteceu no coração de todas nós. Quando a promessa de mudança pelo mundo do digital irrompeu como um dique estourado, fomos para a rua esperançosas e no meio-fio encontramos uma nova cara do Brasil que não era a costumeira, era feia e grotesca, e elegeria presidentes tacanhos e arrancaria da cadeira a única mulher chefe de governo da nossa história. Doeu, e me lembro de pensar que nunca mais seríamos as mesmas.  

Foi mais ou menos nessa época que eu desisti de amar em português. Não necessariamente por causa da outra coisa, mas aconteceu ao mesmo tempo estranhar-me do Brasil e estranhar-me do homem brasileiro, aquela longa fila de rapazes com quem eu brinquei de namorar e com quem depois fui viver maritalmente e de quem parti o coração, por quem tive o meu partido. Nunca mais um romance embalou-se de um bom samba canção, nunca mais chorei baixinho atrás da porta e – graças a deus – nunca mais tive que dar satisfação por estar dançando com ele, mesmo que sem compromisso. 

Mas não tem como reencontrar o meu país sem voltar ao samba, e então me entreguei diligentemente aos braços de Martinho da Vila, Jorge Aragão e Zeca Pagodinho, com quem passei boas tardes calorentas no ponto-morto-primeira-marcha-ponto-morto da Marginal Tietê, tentando não prestar atenção nos motoboys que zunem ao meu lado, buzinam com raiva de mim e algumas vezes arrastam o meu espelho lateral. Começamos bem, devagar, devagarinho. Jorge Aragão conseguiu expressar assim seu desconforto masculino com a separação: “ontem demorei pra dormir, tava assim, sei lá, meio passional por dentro”. Achei bonito. 

Com Zeca, o bailado debaixo da saia godê apareceu em minha vida bem nos dias em que eu escolhia um vestido de noiva – godê – e quase me imaginei rebolando na roda do bamba, meu tempero adocicado pelo dendê da Bahia, terra de minha mãe. Até que Pagodinho resolveu me pendurar uma faixa amarela. 

Era bonita, a faixa, estampada na entrada da favela, tanto que eu tentei ignorar a insistência dele em falar da moça donzela, tantas vezes. 

Eu quero presentear
A minha linda donzela
Não é prata nem é ouro
É uma coisa bem singela

Quando essa música foi lançada, em 1997, eu já tinha 17 anos e dancei muito com aquela ideia de virar rainha da bateria da Portela graças ao amor de um homem, ganhar gato angorá e uma cortina grená pra enfeitar minha janela. Ao volante, voltei a tantos pagodes e sambas onde gastei minha mocidade, onde a alegria de estar junto não traía nenhum medo que aquele meu país ia se desmilinguir. E ia cantando junto com ele. 

Vou comprar uma faixa amarela
Bordada com o nome dela
E vou mandar pendurar
Na entrada da favela

E para gente se casar
Vou construir a capela
Dentro de um lindo jardim
Com flores, lago e pinguela

Mas o calor ia ficando mais insuportável, meu Google Maps avisava que o tempo do trajeto tinha saltado em 20 minutos e eu ia chegar atrasada à reunião, e de repente eu parei de cantar, a voz do Zeca Pagodinho me cortou como uma lança daquelas medievais, vinda de um príncipe que deveria estar em cima de um cavalo. Eu não posso vacilar, ele me disse. 

Mas se ela vacilar
Vou dar um castigo nela
Vou lhe dar uma banda de frente
Quebrar cinco dentes e quatro costelas

O tom era natural, o verso não destoava dos demais, e o cantor só se sobressaltou quando decidiu incendiar a tal faixa amarela, cantando com raiva: 

Vou pegar a tal faixa amarela
Gravada com o nome dela
E mandar incendiar
Na entrada da favela

Chorei. Assustada porque percebi que, na minha mocidade, eu e minhas amigas dançávamos em salões que celebravam que esse era nosso destino. Assustada porque nem um só dos meus namorados me avisou, porque nenhuma de nós nem sequer reparava que era disso que se tratava o nosso amor que esperávamos com tamanha ansiedade

Demoraram duas semanas para eu ter a coragem de voltar ao meu exercício: há de se encontrar alguma beleza naqueles sambas antigos. Quando o fiz, voltei direto a ele, Zeca. Mas a coisa havia sido estragada. 

Comecei a me perguntar se aqueles olhares fixos na saia godê não seriam insistentes demais, se aquela fixação quando eu entrei na roda e ele ficou afim de me namorar não seria um prenúncio de uma violência, se afinal a paixão forte que o domina e o cega a ponto de não saber como termina não era o prenúncio de feminicídio. Já não quero ser água da sede de ninguém. 

Um mal-estar apossou-se de mim. Passei a desconfiar das músicas que sempre embalaram meus amores, um medo passou a abraçar as letras sobre paixões avassaladoras e irrefreáveis. 

Eu nasci em 1979. Quando era adolescente, ficávamos contentes quando um grupo de pedreiros nos chamavam de “gostosas” na rua – isso significava que estávamos sendo aceitas no mundo adulto. Nossos amigos nos bolinavam enquanto estávamos dormindo, e continuávamos fingindo que dormíamos pra não causar conflito; eles não conseguiam se segurar, diziam as músicas, as novelas, os programas de comédia na TV.  

Abraçávamos esses códigos e nos tornamos, também, eles. Nessa época me acostumei a andar de saias longas e vestidos que não marcam o corpo, porque sabia que mostrar minha perna ou meu decote chamaria muitos olhares, muitos assobios, muitos “elogios”. Fui construída assim; até hoje me sinto mal em roupas curtas. Mais tarde, nossos chefes diziam que queriam nos comer diante de todos, e dávamos risada, sabendo que era uma brincadeira, mas também não era. 

Crescemos machistas. Quantas vezes eu não conquistei a amizade de grupos exclusivamente masculinos apontando essa ou aquela “gostosa”. Por outro lado, era eu quem empurrava a mão dos homens que apertavam a bunda das minhas amigas nos blocos, nas festinhas animadas, onde se fumava ainda cigarros a noite toda em salões sem janela. Quando partíamos um coração, éramos sem alma, femme fatales, mesmo que a recusa deles em aceitar o fim se tornasse obsessão, mesmo que eles seguissem os nossos passos por meses a fio e nos vigiassem à noite quando dormíamos. 

Os sambas de Pagodinho me fizeram ver que há algo irreconciliável com o nosso passado, uma ruptura que não se pode refazer porque já não estamos no ponto de partida. Daqui só podemos ir adiante, mas ninguém parece saber como nem onde chegar.  

Como reconciliar-nos com o fato de que muitas somos filhas sem pai, porque vocês sabiam que não eram obrigados a nos criar e sumiam no mundo? Que somos um país de órfãos, de homens tão fracos que tivemos que criar leis e impor cadeia para aqueles que se negam a pagar pensão? E que mesmo assim tantas mulheres deixam de fazer valer o seu direito, porque afinal, vocês não têm a maturidade para tamanha obrigação? Como reconciliar-nos com o fato de que os que ficaram, os que ajudaram a nos criar, estupravam nossas mães quando lhes convinha? Que uma esposa não podia dizer não? Porque eles tinham esse direito pelo simples fato de que não fugiram?   

Como perdoar? Quando entendemos que muitas vezes o afeto por nós é hierarquicamente inferior ao afeto dos homens por outros homens? Quando sabemos que fomos feitas de troféus? Quando eles não se dignaram a buscar que sentíssemos prazer no sexo? Como perdoar aqueles que se ressentem do nosso sucesso? Como perdoar aqueles que nos agrediram porque “perderam a cabeça”, mesmo que tenha sido só uma vezinha? Aqueles que nunca tinham coragem de terminar um namoro e em vez disso passavam a agir como canalhas e nos trair a torto e a direito? Que estrago fazem os covardes. 

No meu carro, naquela tarde, entendi por que a história de Vanessa Barbara na Rádio Novelo gerou tanta consternação, como se do fundo de um poço ou de dentro de uma caixa imemorial tivesse saído uma dor que não tem cura. Porque mesmo depois de tantos anos vocês têm a cara de pau de fingir que nos enganar e nos trair e nos acusar de loucas foi apenas um erro e não parte da maneira violenta como fomos criadas. Quando todos, eu e vocês, dançávamos alegremente cantando que se eu vacilasse, você quebraria minha costela.  

Eu não sei mais amar o homem brasileiro. Ele se esvaiu, o que sobrou dele foi o homem quebrado, fraco, magro, doente, a encarnação do homem caído na figura de Bolsonaro, aquele que nosso país chora porque não o quer abandonar. É esse amor ruim que temos buscado, como nação, porque não se nos oferece nada melhor. 

É preciso construir novas palavras, novos significados. Reinventar o amor. Novos exemplos, novas histórias, precisamos de todo um imaginário que nos permita sonhar e ser românticas de novo. Com o coração partido de uma dor que talvez não tenha fim, eu não desisti; porque sou uma otimista, e porque acredito profundamente neste país. Vou seguir, mesmo sabendo que meu trabalho é somente metade do trabalho a ser feito. O resto é de vocês, homens. Não é fácil, mas não vou aliviar nem dar tapinha nas costas: é uma missão civilizatória. 

Peço apenas desculpas pela minha desajeitada homenagem neste Dia dos Namorados.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.