Por Flávio Chaves*
Há noites em que a cidade adormece, mas eu não. E não é o calor, nem a rotina, nem o acaso. É ela. É sempre ela.
Enquanto as luzes se apagam nas janelas e os carros se recolhem como se fossem bichos sonolentos, algo em mim desperta – uma lembrança, um cheiro, uma frase dita ao pé do ouvido que agora ecoa como oração perdida. Nessas horas, não há mais mundo: há o vazio da rua e a presença dela em tudo.
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Caminho sem rumo pelas calçadas, como se meus passos pudessem desenhar o contorno do rosto que não esqueço. Cada canto da cidade parece guardar um fragmento dela: um sorriso gravado no vidro de uma cafeteria antiga, um perfume suspenso no vento noturno, um olhar escondido no reflexo das vitrines fechadas. A cidade dorme, mas ela, mesmo ausente, acorda tudo em mim.
Penso no tempo em que seus olhos eram o meu abrigo. Nas manhãs em que sua voz era o início de tudo. Nos silêncios que partilhávamos como quem reza – porque o amor verdadeiro não precisa de muito som. E lembro também da última vez em que a vi. Do beijo que parecia eterno. Do adeus que parecia mentira.
Tudo que ficou foi isso: uma saudade que não se cala, um amor que não cansa, um coração que insiste em esperá-la mesmo sem saber se ela ainda voltaria a mim. E talvez não volte. Talvez o destino tenha outros planos. Mas há algo que ninguém pode arrancar de mim: ela aconteceu. E foi tão real que ainda que o tempo passe, ainda que os dias mudem, ainda que outras histórias venham – nenhuma saberá me ferir como ela soube me amar.
Quando volto para casa, os primeiros tons da madrugada já tingem o céu. A cidade desperta, mas eu sigo ali – entre o ontem que me falta e o hoje que não consola. Fecho a porta devagar. E antes de dormir, encosto a cabeça no travesseiro e penso, outra vez: se ela também não dorme, talvez nesse exato momento esteja pensando em mim.
*Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras
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