Porto Alegre busca se reerguer da enchente em meio ao desmonte do setor público

Após arrasar cidades do interior do Rio Grande do Sul, as chuvas iniciadas no final de abril de 2024 encheram o Guaíba e inundaram Porto Alegre a partir do dia 3 de maio. Sucateado por anos, o robusto sistema de proteção inaugurado na década de 1970 como resposta a outras enchentes (de 1941 e de 1967) não foi capaz de conter as águas. Prédios históricos, casas, estabelecimentos comerciais, estações de metrô, estádios e até mesmo o aeroporto foram inundados.

Segundo a prefeitura, 30% do território porto-alegrense e mais de 160 mil pessoas foram afetadas, além de 309 infraestruturas municipais e 45 mil empresas.

A falta de manutenção apropriada do sistema de contenção nos últimos anos resultou em problemas em série especialmente nos diques, comportas e casas de bomba, deixando a cidade vulnerável. Tal processo é reflexo direto, entre outras omissões, do desmonte pelo qual o Dmae (Departamento Municipal de Águas e Esgotos), criado em 1961, vem sofrendo.

Com o atual prefeito, o bolsonarista Sebastião Melo (MDB) — reeleito mesmo após a destruição de maio de 2024 —, não foi diferente. A falta de servidores e de gestão adequada do departamento estão entre os fatores que explicam essa situação e refletem o empenho desta e de administrações passadas em tentar privatizar o Dmae, na contramão do que vem ocorrendo em outros lugares do mundo em que serviços desse tipo têm sido reestatizados devido aos péssimos resultados apresentados pela iniciativa privada.

Leia também: RS ainda enfrenta gargalos para se tornar seguro e resiliente às enchentes

Apesar da gravidade do que aconteceu há um ano, “se o evento ocorresse hoje, a gente viveria a mesma situação, ou seja, Porto Alegre ainda sofre com as mesmas fragilidades”, opina uma pessoa que trabalha no departamento e que prefere não se identificar.

No ano passado, essa mesma fonte denunciou ao Vermelho o descaso da prefeitura com o departamento e a relação dessa situação com o que Porto Alegre acabou tendo de enfrentar. O desalentador, desde então, é saber que o poder público local pouco se dedicou a enfrentar essas fragilidades.

“É impossível negar que às portas de um processo de concessão, com grande probabilidade de que se concretizar, o departamento fique em ‘compasso de espera’. Estima-se que em torno de 40% do departamento possa ser afetado e essas pessoas vivem sob a incerteza desse processo. Fica muito difícil tocar as ações e fazer os estudos que têm que ser feitos num cenário desses”, diz.

Vulnerabilidade ainda é alta

Casa de bomba alagada em 2024. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Segundo a prefeitura, as ações de reconstrução e adaptação climática contam com 219 projetos mapeados de infraestrutura e equipamentos e 129 obras e iniciativas mapeadas na área do meio ambiente.

No entanto, algo básico, como a vulnerabilidade do sistema anti-enchente fica patente até mesmo com eventos de proporção muito menores. No final de março, por exemplo, a estrutura voltou a colapsar devido à falta de luz depois de uma tempestade; casas de bomba deixaram de funcionar e ruas alagaram.

Neste caso, é preciso também colocar o fator CEEE-Equatorial na equação. A empresa fornecedora de energia elétrica, privatizada pelo governo Eduardo Leite (PSDB) em 2021, hoje presta um serviço de péssima qualidade, com enxurradas de reclamação pelo estado.

Leia também: Desastre explicita alto custo da inação de governos e parlamentos com o clima

A falta de luz nas casas de bomba teria ocorrido devido a problemas da empresa. Mas, para piorar, houve um adicional: o não funcionamento de geradores presentes em algumas das casas de bomba. Isso tudo leva, inevitavelmente, a outra questão: como pode uma cidade da importância da capital gaúcha ficar numa situação de tamanha precariedade?

“Hoje, o poder público, a Prefeitura de Porto Alegre e o Dmae são reféns de uma empresa chamada CEEE-Equatorial. Do ponto de vista técnico, o ideal seria haver duas entradas de energia e a empresa de distribuição, que é a Equatorial, garantir que, no caso de haver falha em uma das entradas, a outra esteja em operação. Dessa forma, não seria necessário ter geradores em todas as casas de bombas que, aliás, custam uma Babilônia de dinheiro público e que impacta na tarifa do usuário”, explica a fonte ouvida pelo Vermelho.

Mas, para além disso, Fernando Dornelles, doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental e professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS, explica que o sistema de proteção de Porto Alegre “deveria ser vistoriado, revisado e atualizado periodicamente, além de ter um corpo técnico que se apropriasse e defendesse esse sistema”.

A falta de eventos que pusessem o sistema à prova pode ter contribuído com certo descuido quanto à possibilidade de cheias maiores em gestões passadas. Até 2023, a cota de 3 metros do Guaíba não havia sido superada, tendo havido um pequeno susto em 2015. Nesses anos, foi detectada entrada de água em pontos do sistema. “A gente já viu entradas de água pelas comportas, vazamentos importantes, comportas que foram colocadas e que não tinham trilhos, que estavam mal afixadas no sistema. E 2024 veio para mostrar que não é brincadeira. Um sistema desses tem que ser encarado com muita responsabilidade”, enfatizou. A cota máxima a que o Guaíba chegou no ano passado foi 5,37 metros no dia 5 de maio.

Dornelles lembra que falhas na comporta 14 — uma das mais importantes, no entroncamento das avenidas Castelo Branco, Sertório e Voluntários da Pátria, no bairro Navegantes, próximo ao Centro — foram o principal ponto que fez Porto Alegre inundar. “Se ela tivesse resistido, muito provavelmente a gente teria o ingresso de água, com pontos de inundação e alagamentos, mas a gente não teria a elevação do nível e a interrupção do funcionamento das casas de bomba que a gente viu”, pondera.

O professor conta que recentemente visitou a comporta 14. “Não tem nada ainda. Ela colapsou por completo, foi tirada de lá e não tem nem resquício. Então, como que Porto Alegre vai se defender de uma forma emergencial nessas condições?”, questiona.

Enfrentando o problema

Diante desse cenário, promotores do Ministério Público do Rio Grande do Sul decidiram ingressar na Justiça com uma ação civil pública de indenização por danos morais coletivos e danos materiais e morais individuais homogêneos contra o município pela enchente do ano passado.

Entre outros aspectos, o MP-RS aponta que as falhas ocorridas no sistema anti-enchente resultou de omissão da prefeitura ao longo do tempo e pede R$ 50 milhões de indenização para os atingidos.

Segundo a promotora de Justiça Carla Carrion Frós, uma das responsáveis pela ação, “as falhas no sistema de defesa contra enchentes foram muitas em abril e maio do ano passado. Inúmeros prejuízos tiveram os moradores residentes nos bairros atingidos. Esses danos, não só materiais, mas também morais, devem ser reparados”.

No que diz respeito às obras e medidas para preparar a cidade, estão ações que devem ser tocadas pelo município e pelo governo do estado, boa parte com recursos advindos do governo federal, que aportou R$ 111,6 bilhões em todo o estado desde que ocorreu a tragédia de 2024.

No início do ano, a Casa Civil anunciou a nova fase de apoio do governo federal ao RS, com obras estruturantes para aumentar a capacidade de adaptação climática do estado para enfrentar chuvas e recuperar estruturas destruídas pelas cheias de 2024.

Segundo o governo, os sistemas de proteção de cheias serão construídos com recursos da União que compõem o Fundo de Apoio à Infraestrutura para Recuperação e Adaptação a Eventos Climáticos Extremos. As obras serão executadas pelo governo do estado, em parceria com os municípios envolvidos. O fundo no valor de R$ 6,5 bilhões é administrado pela Caixa Econômica Federal.

Entre os empreendimentos estão a construção de diques para controlar a água de rios e lagos e evitar inundações e melhorias nos sistemas de proteção com galerias de águas pluviais, canais fechados, estação de bombeamento de águas pluviais e canais abertos, o que deve atingir toda a região metropolitana e Porto Alegre.

Também com o objetivo de preparar a cidade para o futuro, o vereador Giovani Culau (PCdoB) apresentou um pacote de projetos de lei voltados para o enfrentamento das vulnerabilidades da cidade. O principal é o PL da Emergência Climática, que busca o reconhecimento oficial da emergência climática em Porto Alegre e determina a necessidade de ações urgentes para mitigar os impactos das mudanças climáticas, evitar danos socioambientais irreversíveis e promover adaptação e regeneração. Além disso, a bancada do PCdoB, formada ainda pelo vereador Erick Dênil, protocolou um pedido de plebiscito sobre a privatização do Dmae.

O post Porto Alegre busca se reerguer da enchente em meio ao desmonte do setor público apareceu primeiro em Vermelho.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.