Jorge Mario Bergoglio tinha o reino do céu dentro de si

O mundo da religiosidade é construído com uma teia que envolve uma série de aspectos e assim diversifica em várias comunidades. Cada uma, portanto, com sua sistemática. Enfim, cada comunidade religiosa, óbvio, puxando a brasa para a sua sardinha. Ou seja, cada uma se achando a mais próxima de “Deus” com suas práticas e liturgias. Sob os escombros dos séculos, há um mar de sangue decorrente da estupidez das famosas guerras santas, em que, sob a alegação essencialmente religiosa, se realizavam a imposição de um deus em relação a outro e, implicitamente, motivações econômicas e políticas por trás da carnificina.

Hoje a espada foi aposentada, e a guerra religiosa tem sido travada com palavras. Estas, vejos-as como mais perigosas, pois, segundo o poeta Carlos Drummond de Andrade, “cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra”. Já a espada tem uma única face nos dois fios de sua lâmina. Tem líder religioso falando coisas do arco-da-velha sobre os concorrentes, e isso com o propósito abjeto de manter a algibeira dos fiéis sob seu domínio. Encontrar Deus em igreja é uma coisa praticamente impossível.

Não tome isso como blasfêmia, altaneiro leitor. Você, creio eu, certamente não usa elmo enferrujado com viseira de papelão, de modo que sabe distinguir bem um moinho de um gigante. Certa vez Jesus, ao ver a casa de oração transformada num covil de salteadores, foi tomado de grande ira e então se valeu de um chicote para expulsar os salteadores. Certamente hoje usaria as tripas dos próprios salteadores para enforcá-los no altar dos templos.

Religiosidade é algo perigoso. Aos índios brasileiros, os portugueses enfiaram um deus goela abaixo quando aqui chegaram. Pero Vaz de Caminha, escrivão da esquadra de Pedro Álvares Cabral, em carta ao rei Dom Manuel, relata que ainda não se sabia se tinha ouro, prata ou outro metal na terra “descoberta”. Fala da enorme riqueza hídrica do lugar, salientando que isso o tornava fértil para tudo que se quisesse plantar, mas dá um toque sutil ao rei de realizar a salvação dos índios: “Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar”. E assim foi feito. Então fez-se trevas na face do paraíso. Aos índios foram dados espelhos, panelas, facas, pentes; e eles então viram “um mundo doente”. E “agora eles só têm o dia 19 de abril”.

Sobre o argentino Jorge Mario Bergoglio, que acabou se tornando papa em 2013, acredito que ele não está dentro do que consta no livro de Mateus 7:21 no sentido de apenas falar “senhor, senhor” de coração oco: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! Entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus”. Apesar do passado tenebroso da Igreja Católica, Bergoglio dava a entender que falava em Deus com o coração cheio Dele. Fiquei fã de Francisco depois de uma entrevista que concedeu ao jornalista e comentarista Gerson Camarotti no início de sua jornada enquanto pontífice.

Apesar de as palavras terem mil faces secretas, como disse o poeta mineiro, acredito que o papa Francisco foi sincero na resposta a Camarotti em relação à sua escolha em ser um pontífice longe da avareza, que é o segundo pecado capital e mais constatado dentro das igrejas. Na frase final de sua pergunta, o jornalista o questiona: “Essa sua simplicidade é uma nova determinação a ser seguida por padres, por bispos e por cardeais?”. Entre suas palavras, estavam as seguintes: “O povo sente seu coração magoado quando nós, as pessoas consagradas, estamos apegadas ao dinheiro. Isso é ruim”.

Papa Francisco, ao escolher o caminho da simplicidade, mostrou-se um pontífice distinto em relação muitos de seus antecessores | Foto: Reprodução

Quando Jorge Mario Bergoglio escolheu Francisco como seu nome de papa, pensei (no bom sentido): “Esse papa é o bicho…” Numa fala sua, deixa bem claro isso: “Cuidemos da nossa mãe Terra, superemos a tentação do egoísmo que nos faz predadores de recursos, cultivemos o respeito pelos dons da Terra e da criação, inauguremos um estilo de vida e uma sociedade finalmente ecossustentável”.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza

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