Bernardo Élis: o mais prodigioso escritor do Brasil moderno

Eurípedes Leôncio

Especial para o Jornal Opção

Inscrever Bernardo Élis Fleury de Campos Curado no pantheon da história é o mais ousado registro para os tempos modernos. É a vitória contra os mandos e desmandos da familiocracia coronelesca; é a enxada transformada em caneta, na mão corajosa de Supriano soletrando o bê-á-bá da vida com Olaia.

Bernardo Élis é sinônimo de resistência que a ditadura não conseguiu calar e que se fez o genuíno embaixador das letras goianas ao abrir caminho para os escritores goianos, nas paragens do eixo leste-sul do Brasil.

Ousado, destemido, firme, talentoso, criativo, o genial autor de “Veranico de Janeiro” arrancou aplausos de escritores e críticos consagrados nacionalmente, como Monteiro Lobato, Tristão de Athaydes, Mário de Andrade, Assis Barbosa, Herman Lima, Evanildo Bechara, Guimarães Rosa, Gilberto Mendonça Teles e tantos outros que não pouparam verdades sobre a pena brilhante do jovem de Corumbá de Goiás que estreava em 1944, com o livro de contos “Ermos e Gerais”, como vencedor da Bolsa Hugo de Carvalho Ramos, concurso literário da Prefeitura de Goiânia.

Importância sincrônica e diacrônica

Bernardo Élis viu, viveu e testemunhou os grandes dramas de sua época: a injustiça social, os mandos e desmandos do coronelismo, a prepotência patriarcal, os jagunços, os tropeiros, os simples, os analfabetos, os camponeses, os migrantes e os excluídos, entrechocando-se num mundo de dor, estupidez e violência.

Sua formação literária se dera na ditadura getulina: censura, prisões de escritores e intelectuais, surgimento da moderna-ficção regional-social nordestina, introduzida em 1928, com a publicação de “A Bagaceira”, de José Américo de Almeida, focalizando um cortejo de fome, miséria, degradação física, moral do ser humano sobrevivendo na paisagem árida e causticante do sertão nordestino.

Eram os retirantes sem rumo, sem esperança numa horrenda paisagem que mais parecia um cemitério redivivo, sendo explorados pelos donos de engenho, os coronéis da terra. Surge, então, o chamado grupo de 30. Rachel de Queirós, aos 19 anos, publica “O Quinze”, em 1930, focalizando a terrível seca de 1915. José Lins do Rego inicia o ciclo-da-cana-de açúcar e do cangaço, com “Menino de Engenho”,1932. Jorge Amado começa o ciclo do Cacau, com o romance “Cacau”, 1932. Graciliano Ramos publica o romance “Vidas Secas”, em 1938.

Todos perseguidos pela ditadura, com censura e prisões, mas resistindo com a arma que lhes sobrara, o talento.

A literatura como trincheira de palavras a cuspir fogo contra os algozes da liberdade, da solidariedade, dos direitos humanos. Nesse quadro dantesco, surreal para muitos, mas visível aos olhos da verdade, surge o neorrealismo, com uma linguagem mais objetiva, com palavras áridas como a própria seca, substantivadas, cortantes como espora, numa linha engajada, denunciatória, panfletária. Verdadeira revolução literária, no conteúdo e na forma, onde o escritor colocou-se na vanguarda das lutas populares e passando a circular com sua obra, onde o homem sofrido circulava, dando-lhe voz e conquistando multidões de leitores.

Bernardo Élis e “Veranico de Janeiro” | Fotos: Reproduções

Neste palco de censura, opressão, onde a produção literária nordestina irradiava e exercia influência em muitos escritores, Bernardo Élis formava sua convicção cultural, e artística, ainda como aluno do histórico Liceu, na antiga capital, Vila Boa, Cidade de Goiás.

A leitura desses escritores nordestinos picava Bernardo Élis, assanhava seu talento, mexia com seu brio e impulsionava seu vigor. Goiás não era diferente: coronelismo, fome, miséria, analfabetismo, injustiça social, jagunçagem, familiocracia, exploração e escravidão nas roças, no cerrado.

Como no ditado popular, “filho de peixe, peixinho… ”, o pai de Bernardo Élis, o excelente poeta Érico Curado, soltava as rédeas da liberdade de expressão do filho e via nele merejar o futuro escritor que ainda jovem mostrava-se talentoso e tinha domínio da linguagem culta e regional, estudante em Vila Boa, captava a angústia existencial da gente sofrida do interior, do sertão goiano, que no silêncio de sua dor espiava o mundo num cochilo de revolta.

Bernardo Élis tomou as dores de seu povo e construiu a verdadeira e única história dos costumes, linguagem, tradições, folclore, fauna e flora goiana, onde a paisagem física se mostra poética nas belezas das matas virgens ou das águas misteriosas do Araguaia, do Tocantins, do Corumbá; ora raivosas reclamando vítimas como protesto diante da maldade humana. Um e outro se misturam e se alternam, com momentos de lirismo e tragédia, representados pelos pássaros cantando diante das trovas dos caboclos ou também, censurando, “raiando” diante do crime hediondo.

Bernardo Élis foi o nosso primeiro escritor modernista que inovou o pensamento de sua geração, que fundou revistas, associação de escritores, como uma bandeira viva e única que não podia cair vencida pela ignorância das rochas humanas que teimam em continuar pedras. Começou poeta, na linha de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond, rompendo os costumes arcaicos/conservadores da Cidade de Goiás, causando escândalo.

Em 1944, ao ganhar o primeiro prêmio da “Bolsa Hugo de Carvalho Ramos”, da Prefeitura de Goiânia, com o livro de contos “Ermos e Gerais”, Bernardo Élis ombreou-se a Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, José Américo de Almeida, Rachel de Queirós, como o sangue novo da literatura brasileira e de imediato fora saudado por toda a crítica nacional que registrava a estreia do goiano de Corumbá.

O primeiro fora Monteiro Lobato, que em longa carta de 5 de outubro de 1944, dirigida a Bernardo Élis, afirma numa das passagens: “Bernardo Élis o mais prodigioso escritor do Brasil moderno, o primeiro grande manejador da imensa massa de dores, estupidez crassa e tragédia que é o imenso Brasil analfabeto do interior. Com esse material e o seu gênio, meu caro Élis, você opera em nossa literatura uma revolução ainda maior do que foi na Rússia o comunismo”. No último parágrafo profetiza: “Bernardo Élis…Fico a pensar quem é esse bicho, onde nasceu, onde mora, que idade tem, que apito toca. Bernardo Élis…um nome que será imenso um dia…”.

Com Bernardo Élis os vencidos pela brutalidade dos donos de terra tiveram voz, braços, olhos e construíram um patrimônio literário chamado de Alma de Goiás, nos cinco volumes impressos pelo Governo do Estado de Goiás, 1987, pela Livraria José Olympio Editora, contendo toda a obra bernardiana, num reconhecimento ao maior talento de toda a literatura goiana, único das terras do Anhanguera com assento na Academia Brasileira de Letras, cadeira nº 1, na mais acirrada disputa de sua história, 1975, com três escrutínios, vencendo a eleição contra o ex-presidente Juscelino Kubitschek.

Bernardo Élis, no alto do Jardim América, em Goiânia, num chalé romântico, onde cuidava de sua biblioteca e de sua musa, escreveu poeticamente na dedicatória do livro, “Apenas um Violão” (Editora Nova Fronteira, em 1984): “Com cintilações de bailarina, subia no horizonte aquela estrela, cujas fulgurações iluminavam céu e terra, fazendo mais longo o dia. Na minha vida, essa estrela é você, Maria Carmelita”.

Nesta casa foi instalado O Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis para os Povos do Cerrado (Icebe), janeiro de 2020, que preserva todo o acervo e legado de Bernardo Élis, o fomento da cultura, da educação, da sustentabilidade ambiental e da responsabilidade social, contando com significativo número de membros titulares, além de membros efetivos, eméritos, correspondentes e “ad perpetuam rei memoriam”, tendo Bernardo como patrono.

O fardão acadêmico não tirou a simplicidade e humildade de Bernardo Élis que viajava pelo Brasil, pelo interior de Goiás proferindo conferências recebendo títulos, homenagens, diplomas, autografando livros em colégios e cursinhos, e emocionado discorria sobre sua vida, sua obra. Mesmo sem ter visto a justiça social que clamara nas décadas passadas sobre os direitos humanos, onde os dramas sociais se mostram nas periferias das Metrópoles e na roça aumenta o número de analfabetos, de explorados, de famintos. Os rios antes fartos, agora reclamam água, peixes e afogam na poluição infernal da vida urbana que mete o pé no córrego e o enforca e o espicha num reduzido cano de 60 milímetros.

Livros do escritor Bernardo Élis

O drama social como temática

Bernardo Élis explorou o drama social como força temática de sua obra, onde os personagens são vítimas da violência e da maldade dos poderosos, ou mesmo vítimas de suas próprias ignorâncias. A maioria dos estudiosos divide a obra bernardiana em dois momentos:

Primeiro momento, “Ermos e Gerais”, “O Tronco” e “Primeira Chuva – contos, romance e poesia” – como engajadas, ou aproximadas da denúncia social, sem demagogia ou panfletarismo ideológico, ressaltando a renovação estilística, com uma prosa inovadora, centrada na cultura, na fauna, flora, onde campeia a miséria social e econômica, os descaminhos de pedra e miséria gerais, desigualdade, isolamento, pobreza, verdadeiramente um neorrealismo, fotografando a realidade ou melhor com sua óptica filma os horrores que enlutavam o sertão de Goiás.

Segundo momento, “Caminhos e Descaminhos”, “Veranico de Janeiro”, onde é mais acadêmico, estilisticamente revoluciona o modernismo e antecipa o pós-modernismo, numa transição da denúncia social para o universal.

Em “Apenas um Violão”, Bernardo Élis adentra ao que poderíamos chamar de terceiro momento, a do memorialista, fase de profundo amadurecimento, registrando o sertão e a civilização, onde nos fala do carro de boi e da bomba, e um apurado trabalho metafórico, um gosto romântico, estampado até no título da obra mencionada.

Autobiografia e obras: Bernardo Élis por ele mesmo

“Nasci em Corumbá (15-11-1915) e ali fiquei até 1923, quando fui com a família para Goiás, passear; era desejo de meu pai que meu irmão mais velho aí ficasse para estudar as primeiras letras e assim, quando foi para meu pai retornar a Corumbá, mandou buscar cavalos que bastassem para todas as pessoas, menos uma. Essa uma faltante seria meu irmão mais velho. Acontece, porém, que o bichinho era resoluto, chorou, brigou e não quis ficar. Como solução, fiquei eu, que era mais cordato.

“Fiz um ano de grupo escolar e regressei a Corumbá em meados de 1924, com tempo bastante para assistir às marchas e contramarchas dos revoltosos de Prestes e dos legalistas, passando por Corumbá. Em 1928, novamente meu pai voltou a Goiás, a passeio. Daí em diante, até 1937, quando tirei o curso secundário no Liceu, morei em Goiás, com alguns intervalos, como no ano de 1936, quando fui ser escrivão de polícia de Anápolis.

“Voltei para Corumbá em 1938 e em 1939 vim para Goiânia, onde resido até hoje. Em 1943 e 1944 estive no Rio de Janeiro durante alguns meses. Fui para ficar e já levava os originais de Ermos e Gerais, acontece, porém que peguei uma gripe forte e tive que chamar um primo estudante de medicina, para me tratar. Enquanto preparava a injeção, com ar sibilino e trágico, o primo recitava:

– Em cada segundo morrem tantos tuberculosos no Rio;

– Em cada minuto morrem tantos tuberculosos no Rio;

– Em cada hora morrem tantos tuberculosos no Rio;

– Em cada dia morrem tantos tuberculosos no Rio;

– Em cada semana morrem tantos tuberculosos no Rio;

– Em cada mês morrem tantos tuberculosos no Rio.

“De tal maneira aquilo me calou na alma que no terceiro dia, ainda tossindo e espirrando, fiz minha mala, peguei o trem ali na Pedro II e vim esbarrar em Goiânia, com o firme propósito de jamais pensar em cidade grande.

Obras do integrante da Academia Brasileira de Letras

“Em 1944, pela Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, criada pelo prefeito Venerando de Freitas Borges, sai a lume meu primeiro livro de contos, “Ermos e Gerais”. A crítica o recebeu com louvor, Monteiro Lobato e Mário de Andrade escreveram cartas altamente elogiosas.

“Outros livros vieram: “Primeira Chuva”, poesias, 1953; “O Tronco”, romance, 1955; “Caminhos e Descaminhos”, contos, 1965; “A Terra e as Carabinas”, 1951, em folhetim de jornal local.

“Em 1966, apareceu “Veranico de Janeiro”, em 1973 publica “Marechal Xavier Curado, Criador do Exército Nacional”, prêmio Sesquicentenário da Independência do Brasil e, em 1974, pela Editora José Olympio foi editada a Seleta de Bernardo Élis, adotada como livro-texto nas escolas.

“Verdadeira premiação aos meus esforços foi a classificação no concurso de contos instituído pela Editora José Olympio, com obtenção do prêmio José Lins do Rego, em 1965, para o “Veranico de Janeiro” que ainda mereceu o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, distinção igualmente outorgada ao romance “O Tronco”. Pela Editora José Olympio tive oportunidade de ter minhas obras distribuídas em plano nacional.

“Upa, como é duro e como é desanimador escrever num país de analfabetos e ainda por cima no sertão e por cima de tudo num Estado pobre e desimportante como Goiás!”. Dissipou-se em grande parte a melancolia de tais palavras ante as mudanças verificadas no Brasil: o próprio sertão com conotação de isolamento e inacessibilidade começa a existir, para ceder lugar à integração nacional decorrente, entre outros fatores da criação de Goiânia e Brasília.

“E uma das provas dessa mudança é a minha eleição para a Academia Brasileira de Letras, a 23 de outubro do corrente ano, galardão a que aspiramos todos nós trabalhadores das letras, e que Goiás vê pela primeira vez atribuído a um seu filho.”

Rio de Janeiro, outubro de 1975.

Bernardo Élis

Eurípedes Leôncio é professor de literatura e crítico literário.

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