Ernest Mahle – o compositor que soube educar com beleza

O Brasil perdeu, na  noite de segunda-feira,  12 de maio, uma de suas figuras grandiosas  e discreta da música de concerto: Ernst Mahle. Compositor, regente e pedagogo, Mahle faleceu aos 96 anos em Piracicaba, cidade que escolheu para viver e à qual dedicou mais de sete décadas de trabalho incansável pela formação musical e cultural. Sua vida se confunde com a história da música brasileira do século XX, principalmente por um legado que vai além do artístico, um legado educacional, comunitário e profundamente humano.

Nascido em Stuttgart, Alemanha, em 1929, Mahle chegou ao Brasil em 1951, trazendo com a família um  piano e o espírito de reconstrução que tantos imigrantes forjaram entre guerras. Foi aqui que, influenciado por Hans-Joachim Koellreutter,  figura central do modernismo musical brasileiro, encontrou sua vocação não apenas como compositor, mas como formador de gerações. A partir de 1953, em Piracicaba, fundou e dirigiu a Escola de Música que hoje leva seu nome, a EMPEM, tornando-se referência incontornável da educação musical no país.

Ernst Mahle | Foto: Reprodução

Mahle acreditava que ensinar era também compor. A música, para ele, não era uma abstração elitista, mas uma linguagem a ser partilhada. Escreveu centenas de peças pensadas para estudantes: concertinos, sonatinas, pequenas suítes, todas com alto rigor técnico e beleza formal. Rejeitando o dilema entre vanguarda e tradição, Mahle procurava um “meio termo entre o novo e o conhecido”, nas suas palavras:

“ que a música pudesse ser tanto desafio quanto acolhimento”

Essa postura pedagógica o coloca ao lado de nomes como Villa-Lobos e Camargo Guarnieri, compositores que viram na educação musical uma via de transformação social. Com um catálogo que ultrapassa duas mil obras, Mahle transitou por todos os gêneros: música de câmara, concertos solistas, canções, corais, obras sinfônicas e até óperas. Entre elas, A Moreninha, O Garatuja e Isaura, sempre com enredos voltados ao imaginário nacional e à literatura brasileira, outra prova de seu compromisso com a cultura como ponte entre gerações.

Sua linguagem, por vezes associada ao neoclassicismo, é profundamente lírica e marcada pela clareza formal. A Suíte Nordestina e o Divertimento Hexatonal, por exemplo, revelam um compositor capaz de articular com maestria estruturas formais e inspiração popular. Já nas Sete peças sobre uma ou duas notas só ou nos Intervalos, vemos o Mahle experimental, aquele que, como bom discípulo de Koellreutter, sabia mergulhar nas propostas mais radicais do século XX.

Mas talvez seu gesto mais revolucionário tenha sido o de permanecer. Permanecer em Piracicaba, permanecer ensinando crianças, permanecer escrevendo para alunos. Permanecer acreditando que a música ainda poderia,  e pode,  tocar e transformar vidas. Segundo Mahle:

“Minha maior satisfação é ouvir meus ex-alunos que se tornaram excelentes profissionais”,  (…) “Estamos remando contra a maré, mas vale a pena.”

Ernst e Cidinha Mahle | Foto: Reprodução

Ao lembrar Mahle, não se pode esquecer de sua companheira inseparável, Maria Apparecida Romero Pinto Mahle, a Cidinha. Juntos, construíram um dos mais consistentes projetos de educação musical do Brasil, pautado pelo afeto, pela disciplina e pela crença na beleza como valor formativo.

Em tempos de pressa, Mahle foi profundidade. Em tempos de espetáculo, foi essência. Sua música, feita muitas vezes para iniciantes, é, paradoxalmente, um convite ao amadurecimento. Que saibamos escutá-la com o mesmo respeito e delicadeza com que ele a escreveu para todos.

Sugerimos a audição da  Suite Nordestina para Cordas em três movimentos. Observe que Mahle combina elementos da música folclórica nordestina com técnicas da música  de concerto. Sua linguagem é tonal, mas com frequentes modulações e uso de harmonias quartais e modais, conferindo uma sonoridade moderna sem perder a conexão com as raízes populares.

Ouça essa gravação  de 02 de julho de 2022 no Teatro SESI Campinas – Amoreiras com a Orquestra Abaporu sob a regência do maestro William Coelho.

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