Pelo menos 180 criminosos nazistas¹ moraram ou circularam na Argentina, depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Muitos deles acolhidos pelo governo do presidente Juan Domingo Perón (1895-1974), que tinha simpatia pelo regime dirigido por Adolf Hitler, o poderoso chefão da Alemanha entre 1933 e 1945. No geral, chegavam à América do Sul vindo da Espanha franquista.
Os nazistas chegaram na Argentina bancados pelos articuladores da Rota dos Ratos, com apoio da Cruz Vermelha e da Igreja Católica (o bispo austríaco Alois Hudal se empenhou pessoalmente na operação e organizou a escapada do comandante de Treblinka, Franz Stangl, para a Síria e, depois, para o Brasil. O carrasco nazista trabalhou para a Volkswagen, durante anos, no país tropical). Os documentos sobre nazistas na Argentina estão desclassificados desde 1992, por decisão do então presidente Carlos Menem. Mas só agora, no governo do presidente Javier Milei, 1850 documentos estão sendo revelados ao público e, inclusive, poderão ser consultados na internet. O material está no Archivo General de La Nación.

O chefe de Gabinete do governo de Milei, Guillermo Francos, é peremptório: “[O Estado argentino] não tem motivo para seguir resguardando” as informações sobre os nazistas protegidos pelo peronismo².
Os jornais da Argentina e da Espanha — por exemplo, o “Clarín” e “El País” — divulgaram uma série de reportagens sobre o assunto. A divulgação dos documentos atende pedidos do Senado dos Estados Unidos e do Centro Simon Wiesenthal.
Muitas informações divulgadas não são novas³, mas, como disse uma autoridade, agora estão oficialmente documentadas4 e, crucial, o material poderá ser consultado por qualquer pessoa. O Centro Simon Wiesenthal busca, sobretudo, informações sobre as conexões de nazistas com o banco Credit Suisse — hoje, USB.
O repórter Daniel Santoro, do “Clarín”, publicou reportagem, sob o título de “Fabricaciones Militares: actas revelan cómo se financió el arribo de nazis” (“Fabricações Militares: atas revelam como se financiou a chegada dos nazistas”), no domingo, 4.
Javier Milei conversou com autoridades do Centro Simon Wiesenthal, em fevereiro deste ano, a respeito das relações do Credit Suisse e nazistas que escaparam para a Argentina.

O ministro de Defesa (Defensa), Luis Petri, disse que há documentos, “atas” sobre a “contratação” em países europeus tanto para articular a rota de fuga de nazistas para a Argentina quanto para, em seguida, financiar sua instalação no país. O Centro Simon Wiesenthal promete revelações sobre o assunto “entre fevereiro e março de 2026”.
O financiamento não era apenas aos hierarcas nazistas que se mudaram para a Argentina. Outros países, como Paraguai e Chile, também receberam recursos para protegê-los e mantê-los.
Há indícios de que o financiamento à fuga e à manutenção dos nazistas na América Latina se deu por intermédio do Credit Suisse. O banco da Suíça, ao menos em tese, estaria agindo de modo colaborativo, com alguma resistência, porém.
Os fundos que financiaram os nazistas que fugiram para a América Latina eram, possivelmente, roubados de judeus. O dinheiro, supostamente em grandes quantidades, era “enviado à Argentina para financiar empresários pró-nazistas e devolvido em parte à Europa por intermédio do banco Credit Suisse”, assinala a repórter Mar Centenera, do “El País” (reportagem de 30 de abril de 2025).

“El País” diz que a “rota dos fundos” — do dinheiro — ainda não está devidamente esclarecida. Os documentos da Argentina (como as Atas de Fabricações Militares), vários já nas mãos do Centro Simon Wiesenthal, poderão esclarecer a questão das contas bancárias usadas por nazistas e apoiadores.
O Centro Simon Wiesenthal informou ao diário espanhol “El País”: “Essas contas incluíam desde empresas alemãs, tais como IG Farben (provedora de gás Zyklon-B, utilizado para exterminar judeus e outras vítimas do nazismo), até organismos financeiros como o Banco Alemão Transatlântico e o Banco Germânico da América do Sul. Os dois bancos serviram, aparentemente, para a realização das transferências nazistas a partir da Suíça”. A investigação do CSW começou em 2020.
A chegada dos nazistas à Argentina
Os nazistas Josef Mengele, Walter Kutschmann e Adolf Eichmann moraram na Argentina por vários anos. Chegaram ao país pela Rota dos Ratos5.
Os documentos revelam, conta o “Clarín”, que “Mengele chegou por meio de um acordo com a Cruz Vermelha Internacional e Kutschmann ingressou no país em 15 de fevereiro de 1949 [ou 1948, segundo “El País”] com o nome falso de Pedro Ricardo Olmo e com o passaporte espanhol número 538765”. Portava um documento de religioso conferido pelo governo da Espanha, então dirigida pelo general Francisco Franco.

O médico Josef Mengele chegou ao porto de Buenos Aires, em 22 de junho de 1949, “em busca de impunidade”, diz “El País”. O Anjo da Morte de Auschwitz, responsável por vários assassinatos, entrou na Argentina com um passaporte falso com o nome de Helmut Gregor. Com 38 anos, informou às autoridades que era “técnico-mecânico”.
Seis anos depois, em 1956, sentindo-se protegido pelo governo, Josef Mengele obteve novos documentos, agora com seu verdadeiro nome, retirando apenas o f de Josef. Nascia, assim, “José” (ou Jose). Manteve o sobrenome que o tornou famoso.
Em Buenos Aires primeiramente Mengele morou em um hotel e, depois, passou a residir na casa de Gerhard Malbranc — “testa-de-ferro do dinheiro nazista”, frisa “El País”. Não era o único “controlador” do dinheiro na capital argentina.

Porém, quando Adolf Eichmann foi sequestrado pelo Mossad, em 1960, Mengele caiu na clandestinidade, mudando-se para o Paraguai. Em seguida, casou-se com a viúva de um irmão, no Uruguai. Os dois moravam na Argentina.
Mengele acabou morrendo afogado em Bertioga, no Brasil, em 1979, quando usava o nome de Wolfgang Gerhard. Recebia proteção de admiradores (alguns, provavelmente, pagos pela rede de proteção) do nazismo.
Operador do sistema de transporte de prisioneiros, a maioria judeus, para os campos de concentração e Extermínio, Adolf Eichmann chegou na Argentina em 1950 com um passaporte, fornecido pela Cruz Vermelha, com o nome de Riccardo Klement. Apresentava-se como tendo nascido em Bolzano, cidade italiana. Viveu anos em San Fernando, na periferia norte de Buenos Aires, com a mulher e os filhos.

A operação do Mossad que resultou na captura de Adolf Eichmann, de acordo com “El País”, “contou com a ajuda de integrantes das forças de segurança argentinas”. Os documentos desclassificados pontuam assim. Há livros sugerindo que o governo da Argentina não ficou sabendo de imediato do sequestro.
O capitão da SS Erich Priebke viveu tranquilamente na Argentina, em Bariloche, mesmo no período democrático.
Em 1991, entrevistado pelo escritor argentino Esteban Buch, Erich Priebke admitiu sua participação no massacre conhecido como “Fosas” (sepulturas, covas) “Ardeatinas”, quando 335 italianos foram executados por ordem direta de Hitler. Em 1994, depois de uma entrevista à rede americana ABC, que gerou protestos globais, o nazista foi extraditado para Roma, onde foi julgado e condenado à prisão perpétua por seus crimes.

Notas sobre nazistas na América do Sul
¹ Os criminosos nazistas eram, na maioria, alemães. Mas havia também croatas, ucranianos, bielorussos, holandeses e belgas. Foram “acolhidos” pelos dois primeiros governos de Juan Domingo Perón.
² Há a possibilidade de uso político por parte de Javier Milei? É provável (mas não li nada a respeito nos jornais argentinos). Porque sua cruzada política é contra o peronismo-kirchnerismo.
Curiosamente, ouvi, em Buenos Aires, entre abril e maio deste ano, pessoas que dissociam, de maneira veemente, o peronismo do kirchnerismo. Na Feria Internacional del Libro de Buenos Aires, escutei sempre a mesma coisa: o kirchnerismo estaria “conspurcando” o peronismo.
“Votei tanto em Cristina Kirchner quanto em Alberto Fernández, mas não aprovo tudo o que fizeram, sobretudo em termos financeiros. Mas permaneço admirando Perón”, me disse um livreiro que, dono de uma pequena livraria, visitava o stand da distribuidora Waldhuter.

³ “Para Ariel Gelblung, diretor do Centro Simon Wiesenthal, a publicação dos arquivos não aporta informação nova para os especialistas, mas permitirá, isto sim, que todos os interessados possam formar sua própria opinião a partir da leitura de fontes diretas sobre os anos em que a Argentina se converteu em refúgio de criminosos fugitivos”, assinala “El País”.
4 “Até o momento, os documentos alusivos à atuação dos hierarcas nazistas na Argentina só podiam ser consultados em uma sala do Arquivo Geral da Nação. Com a mudança, qualquer pessoa interessada poderá aceder de forma online e, inclusive, copiar o material”, anota o “Clarín”.
“Os registros são o resultado das investigações realizadas pela Dirección de Asuntos Extranjeros de la Policía Federal, pela Secretaría de Inteligencia del Estado (Side) e pela Gendarmería Nacional, entre as décadas de 1950 e 1980”, informa o jornal argentino.
5 Há um livro que pode interessar ao leitor: “A Verdadeira Odessa — O Contrabando de Nazistas Para a Argentina de Perón” (Record, 448 páginas, tradução de Berilo Vargas), de Uki Goñi. O autor faz um mapeamento amplo e documentado da operação para levar nazistas à Argentina e, também, a outros países da América do Sul, como Paraguai.
O post Milei abre arquivos sobre nazistas na Argentina para consulta popular; Credit Suisse sai mal apareceu primeiro em Jornal Opção.