“Tem quem fique impressionado por eu ter me graduado em uma das maiores universidades do país”, conta o amazonense Robson Baré, 27, formado em jornalismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). “Ainda convivemos com estigmas sobre a nossa competência profissional e os nossos saberes em relação aos dos não-indígenas. Precisamos nos reafirmar e nos provar o tempo todo”, diz o bacharel, discurso que encontra eco tanto no serviço público quanto no privado de todo o país.
Apenas 0,37% do total de 570.590 servidores federais ativos são indígenas, segundo dados do Painel Estatístico de Pessoal do Ministério da Gestão e Inovação – parte expressiva concentrada nas áreas de educação e saúde. Entre as 1,1 mil maiores empresas privadas brasileiras, até 2024, a participação indígena em cargos de entrada e de liderança é ainda menor: 0,1%, segundo pesquisa do Instituto Ethos.



Em tempos em que há uma demanda social maior por diversidade no mercado de trabalho, as dificuldades são enfrentadas desde o primeiro contato com as empresas. “Na primeira frase da minha apresentação [no currículo], sempre destaco que sou indígena do povo Baré-Tukano. É importante lembrar de onde eu vim”, conta Baré, atribuindo ao importante detalhe parte do insucesso em tentativas frustradas de emprego no setor privado.
Embora não seja concursada, a baiana Samara Pataxó, 35, vive uma realidade mais próxima dos 2.101 servidores públicos federais indígenas em atividade no Brasil, o que envolve ineditismos. “Sou a primeira indígena a ocupar uma assessoria dentro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), instituição que completou 93 anos em fevereiro. Isso traz um impacto, quebra muitos estereótipos, paradigmas, mas também possibilita que as pessoas possam ter um novo olhar sobre as questões indígenas”, afirma.
Por que isso importa?
- Participação proporcional de indígenas no mercado de trabalho ainda não reflete a composição da população brasileira.
- Indígenas em áreas do conhecimento que dependem de formação específica e inserção desse grupo em grandes empresas ainda precisam ser multiplicados em quase 10 vezes para atingir paridade com a população branca.
Política e educação, os indutores da mudança (ainda) tardia

Em janeiro de 2023, durante a cerimônia de posse do terceiro mandato Lula, o cacique kayapó Raoni Metuktire subiu a rampa do Planalto ao lado do presidente. A presença do indígena, membro honorário da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), junto a representantes de outras minorias mandava um recado claro da expectativa de um governo com políticas de inclusão mais sensíveis.
Chefe de Participação Social e Diversidade do Ministério dos Povos Indígenas, Jecinaldo Seteré observa que os últimos 30 anos foram acompanhados de avanços significativos para essas comunidades. Ele atribui essa realidade a três fatores principais: fortalecimento do movimento indígena, fim da tutela que era exercida pelos órgãos de Estado e conquista de espaço nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Segundo o Censo 2022, 0,83% da população brasileira se declara indígena. Atualmente, durante o governo Lula, 2,1 mil indígenas estão entre os servidores públicos federais, 0,37% do total, uma marca ainda menor do que a metade da paridade da demografia nacional. Mesmo em locais como o Ministério dos Povos Indígenas, onde a concentração dessa população é naturalmente mais acentuada, o contingente não chega à metade do efetivo: 98 servidores se declaram indígenas, 45% dos 217 que atuam na pasta.
A Lei 14.553, que entrou em vigor ainda em abril de 2023, determina que as empresas, sejam elas públicas ou privadas, solicitem a autodeclaração dos trabalhadores sobre sua raça e etnia, em conformidade com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que utiliza as categorias branco, preto, pardo, amarelo e indígena. A ideia é contabilizar a representatividade de grupos minoritários e de elaborar políticas afirmativas, dois eixos que já vêm ganhando espaço nos últimos anos.
No cerne de toda a mudança, segundo Seteré, está a educação: “É um pilar muito importante nesse processo, porque através da educação indígena conseguimos despertar para as nossas lutas e uma melhor organização.”
A difícil ascensão em um mercado majoritariamente branco
O Instituto Ethos divulgou em 2024 uma pesquisa sobre diversidade nas 1.100 maiores empresas do Brasil e revelou que, embora haja maior consciência entre as lideranças sobre a falta de diversidade, as ações e políticas de inclusão ainda são insuficientes e focadas na entrada, não na ascensão dentro da empresa.
Os dados mostram que há 0,1% de homens indígenas em cargos de alta liderança (conselho de administração e executivo), marca que cai a zero no caso de mulheres indígenas.
O índice é o mesmo para cargos de média liderança (gerência e supervisão) e de entrada (trainee e estagiário), sendo esses postos ocupados por 0,1% de mulheres indígenas.
Em comparação, mais de 70% dos cargos de alta liderança são ocupados por homens brancos, enquanto que nos empregos de entrada, os homens brancos ocupam 9% das vagas. Por sua vez, as mulheres brancas estão em pouco mais de 20% dos cargos de alta liderança e são maioria nas vagas de entrada.

Dificuldades comuns começam desde a formação
Mesmo nas universidades, que deveriam ser ambientes com maior promoção da diversidade e inclusão, há entraves que repelem a permanência indígena, sobretudo devido aos deslocamentos, distâncias, choque cultural e linguístico, representatividade e acesso à renda.
Natural de São Gabriel da Cachoeira (AM) e da Terra Indígena do Alto Rio Negro, Robson Baré decidiu ser jornalista aos 14 anos, mas não se sentia representado pelos rostos que assistia nos telejornais da TV. Com problemas familiares, não pôde cursar Comunicação Social após ser aprovado na Universidade Federal do Amazonas, em 2014. Só começou o ensino profissionalizante após dois anos, com um curso técnico em administração, com o qual não se identificou.
A carreira só teve início ao descobrir o vestibular específico para indígenas da UFPR, que eventualmente abria vagas para candidatos de outras regiões do país. Se deslocou 3.288 km até Pinhão (PR) para prestar o vestibular, que até hoje não garante que os candidatos escolham o curso de sua preferência, definido por disponibilidade de escolha a partir da classificação do candidato. Aprovado, enfrentou a angústia de ter que deixar a família para trás para investir na formação.

“Me bateu um desespero porque fiquei pensando em como ia deixar a minha mãe. Mas ela me disse para seguir meu caminho, que estava muito feliz por mim e me ajudou financeiramente nos primeiros meses”, recorda, emocionado, o jornalista, que destaca como sua origem contribui para a diferenciação do seu trabalho. “A visão indígena de dentro do território é muito importante até para falar sobre mudanças climáticas, soluções ambientais; é necessário ouvir os indígenas”, avalia.
Para a mestre e doutora em direito pela Universidade de Brasília (UnB) Samara Pataxó, as desigualdades encontradas em Salvador e na Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde ela cursou direito, faziam com que ela sentisse que não merecia estar naquele lugar.
“Numa das turmas que entrei, havia filhos de prefeitos, de políticos, que estudaram nas melhores escolas. Vinha uma frustração, porque eu estudava muito e não conseguia tirar notas boas. Não havia outra pessoa indígena, então me sentia mais próxima dos estudantes que também eram periféricos, negros, trabalhadores”, lembra.

Na Terra Indígena Coroa Vermelha, no extremo sul da Bahia, ela faz parte da primeira geração da família a ter acesso a estudos, em uma escola pública dentro da aldeia. “Meus avós eram pessoas analfabetas e meus pais tiveram pouco acesso à escola. Eu sempre ouvia muito das lideranças, avós e pais que a minha geração é privilegiada”, lembra Samara, que seguiu caminho diferente do comum para a juventude indígena, que atua como guias de turismo, artesãos, pescadores, agricultores ou professores.
“As lideranças da comunidade queriam que a gente continuasse tendo vínculo com a aldeia, e, ao mesmo tempo nos incentivavam a exercer outras profissões que trouxessem bons retornos para a própria comunidade”, completa Samara Pataxó, que disse se inspirar na ex-deputada federal Joenia Wapichana, primeira advogada indígena do Brasil, no caso da Raposa Serra do Sol, para seguir carreira, que culminou com convite do ministro e ex-presidente do TSE Alexandre de Moraes para compor a Secretaria-Geral no cargo de assessora-chefe de Inclusão e Diversidade da presidência do tribunal, em 2022.
Samara explica que levou para sua atuação profissional o conceito de “aldear” espaços de poder, que se trata de uma estratégia de resistência e busca por direitos na política, judiciário, legislativo e demais setores. Já o conceito de “aldear direitos”, que compõe sua tese de doutorado, trata da conexão entre conhecimento jurídico e estratégias de luta tradicionais dos povos indígenas. “Estamos formando aldeamentos através da nossa presença nesses espaços que por muito tempo não fomos convidados ou nos foi negado o direito a estar e exercer”, reforça.