
Na publicidade, a Uber vende a ideia de liberdade. Trabalhe quando quiser, do jeito que quiser, sem patrões ou até mesmo sem amarras. Sem bater cartão ou ate mesmo dar satisfação para o chefe. Como ele se chama? Algoritmo! Esse pequeno grande revolucionário é uma revolução na mobilidade e no mercado de trabalho. Mas quem olha bem de perto ouve e vê outra história: jornadas extenuantes, rendimentos voláteis, riscos elevados e uma ausência completa de garantias. A promessa de autonomia se dissolve na realidade dos algoritmos que controlam o ritmo, os ganhos e, muitas vezes, a dignidade dos motoristas.
Tive uma boa experiência nesse assunto. Era o ano de 2010 e já morava na Holanda há dois anos. Resolvi entrar de cabeça no trabalho de bike-messenger no País. Comecei como autônomo e depois proprietário da empresa. Sofri dois acidentes. Um o motorista teve culpa e pagou todos os prejuízos. O segundo cai sozinho e machuquei a mão esquerda. Na adrenalina não parei de pedalar. Parei em um sinal e um ciclistas olhou para mim e se assustou. “O que você na mão? Tem que ir para um hospital agora”, comentou. “Já estou acostuma”, respondi de bate e pronto. Semanas depois estava melhor só que nesse acidente quem mais se assustou foi a minha esposa. Muito pelo fato de eu não ter nenhum direito trabalhista, clientes e salário fixo. Anos depois parei e resolvi dar um basta a essas aventuras perigosas. Senti, por anos, na pele e no bolso o que foi a dita “uberização” do trabalho. O que é isso?
Segundo o sociólogo Ricardo Antunes, um dos principais estudiosos das transformações do mundo do trabalho, cunhou o termo “uberização” para descrever essa nova forma de exploração laboral. Ele argumenta que o modelo da Uber não apenas precariza as condições de trabalho, mas também redefine o papel do trabalhador na economia, convertendo-o em um prestador de serviço descartável, sem proteção social ou segurança jurídica.
A Uber se exime de qualquer responsabilidade sobre seus motoristas. Formalmente, eles não são empregados, mas “parceiros”. Uma relação assimétrica onde a plataforma detém todo o controle sem assumir nenhum ônus. Isso significa que, quando um motorista sofre um acidente, é assaltado ou simplesmente é banido do aplicativo sem explicação, não há instância real de recurso.
Esse modelo se expande. Não é apenas o transporte: entregadores de comida, profissionais da saúde, do ensino e até da área jurídica começam a ver sua profissão sendo mediada por algoritmos opacos. O sociólogo espanhol Antonio Casilli, em seu livro En attendant les robots, mostra como plataformas digitais exploram mão de obra invisibilizada para alimentar inteligências artificiais e sistemas automatizados. O trabalho não desaparece, apenas se torna mais fragmentado, desprotegido e mal remunerado.
No Brasil, o impacto é ainda mais cruel. Em um país de alta informalidade e poucas opções de trabalho digno, a Uber e empresas similares se tornam uma última alternativa. Para muitos, é isso ou o desemprego. Mas o custo é alto: jornadas que podem ultrapassar 12 horas diárias, desgaste físico e mental, além do endividamento com a manutenção dos veículos.
O futuro do trabalho parece estar cada vez mais nas mãos dessas plataformas, e a regulação não acompanha o ritmo da transformação. A questão é: é possível frear a precarização e construir um modelo de trabalho digital que respeite direitos básicos? A resposta está em disputa, mas enquanto a Uber continuar operando sem responsabilização, a liberdade prometida seguirá sendo apenas uma ilustração bem desenhada na tela de um smartphone.
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