Em 4 de maio de 2024, enquanto chuvas intensas continuavam castigando o Rio Grande do Sul e o nível dos rios gaúchos estava longe de voltar ao normal, o governador Eduardo Leite (PSDB) disse em coletiva de imprensa que o estado precisaria de “medidas absurdamente excepcionais” e de “uma espécie de plano Marshall”, em referência ao programa de reconstrução da Europa no pós-Segunda Guerra Mundial. “Quem já foi vítima da tragédia, não pode ser vítima depois da desassistência, da demora, da burocracia”, afirmou o mandatário.
O “plano Marshall” de Leite foi batizado de “Plano Rio Grande” e virou lei 20 dias depois da declaração do governador. Passado um ano da tragédia, o projeto que concentra as diversas iniciativas do governo do tucano para a reconstrução do estado tirou algumas iniciativas do papel, mas também é alvo de críticas.
Ao longo do último mês, a Agência Pública conversou com mais de uma dezena de pessoas que têm acompanhado o processo de perto, sob diferentes óticas. Em comum, elas afirmam que o Plano Rio Grande tem problemas com transparência e efetiva participação social, não foca em prevenção e tem demorado mais do que deveria para avançar, especialmente nos projetos estruturantes, muitas vezes atravancado justamente pela burocracia que o governador criticou em seu discurso. Para especialistas, o estado está longe de estar mais resiliente para fazer frente a uma nova chuva intensa.
“A sociedade ainda não está preparada e as infraestruturas também não estão preparadas, nem mesmo minimamente prontas. Muitas cidades ainda estão com os rios assoreados, os sistemas hídrico e de esgoto não estão ainda preparados para um volume de chuva um pouco mais considerável, quem dirá 300 milímetros em 24 horas. A gente ainda está engatinhando”, afirma Daniel Caetano, doutor em Meteorologia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
A visão de Caetano é compartilhada pelo procurador regional dos Direitos do Cidadão Adjunto do Ministério Público Federal (MPF) em Porto Alegre, Fabiano de Moraes. “Se acontecesse uma tragédia daquele tamanho hoje, teria efeitos piores do que os do ano passado, porque muito pouco foi feito. Não foi reconstruído o que existia na época, nem foram melhorados os sistemas de proteção. Tem projetos, mas ainda tem muito a avançar”, diz.
As enchentes e os deslizamentos de terra que atingiram o estado no ano passado afetaram quase todo o estado (478 dos 497 municípios), deixaram 183 mortos, 27 ainda desaparecidos e 806 feridos. O Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, ficou mais de cinco meses fechado. Os prejuízos econômicos para o estado, como perdas de infraestrutura e para o agronegócio, foram calculados em quase R$ 90 bihões.
Uma análise publicada logo depois da tragédia indicou que ela foi duas vezes mais provável de acontecer por uma combinação de falhas na infraestrutura local com as mudanças climáticas. Cientistas preveem que eventos como esses se tornarão mais comuns e mais intensos quanto mais o planeta aquecer.
Para o Rio Grande do Sul, a estimativa é de aumento na ocorrência de chuvas intensas em curtos períodos de tempo, o que reforça a importância de medidas de prevenção, mitigação e preparação para desastres.
A Pública enviou uma lista de perguntas para o governo do Rio Grande do Sul e reproduz trechos das respostas ao longo da reportagem. A íntegra, assim como uma nota complementar enviada pela assessoria de comunicação, podem ser conferidas neste link.
Na nota, o governo afirma “respeitar as opiniões emitidas pelas fontes consultadas na matéria” e diz que “considera todas as observações bem-vindas para qualificar as ações de recuperação do estado”. Também foram informadas medidas tomadas em diferentes frentes no âmbito do Plano Rio Grande.
Falta foco em prevenção, alertam especialistas
Com 121 projetos no total, o Plano Rio Grande foi dividido em três eixos: “Emergencial” (54 projetos), “Reconstrução” (26) e “Rio Grande do Sul do Futuro” (41). As medidas vão desde um programa de manejo de cães e gatos até isenções do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), passando por reconstrução de pontes, apoio na formulação de planos diretores e obras em sistemas de proteção.
Independentemente do nome dos eixo, uma análise feita pela startup de mudanças climáticas Kaz Tech considerando o objetivo desses projetos, apontou que cerca de um terço (42) se enquadra em “reconstrução”; 29 focam na “resposta”; 47 em “preparação”, apenas três são de “mitigação” e não há nenhum focado em “prevenção”. A startup é capitaneada por Marcos Kazmierczak, doutor em desastres naturais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
“O governo do estado não está pensando no médio e no longo prazo, o negócio é resolver o agora. [Mas] prevenir sempre foi, é e continuará sendo mais barato do que reconstruir. Logicamente, se o rio subir 20 metros, eu não vou impedir que uma indústria, por exemplo, seja totalmente submersa. Mas [com medidas de prevenção] eu vou poder tirar todos os empregados, tirar o estoque, os caminhões, alertar os funcionários”, aponta Kazmierczak.
“Realmente está sendo feito na base da recuperação de coisas bem estruturais, obras, desassoreamento. Não se fala realmente em prevenção, em mudança de comportamento, em mudança de paradigma”, concorda Fernando Meirelles, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A Pública analisou o status de implementação dos 121 projetos a partir dos dados disponíveis no site do Plano na primeira quinzena de abril. A maior parte (60%) consta como “em andamento” ou “em execução”; mas para boa parte desses 72 projetos não há detalhamento do que isso significa. Outros 18 projetos estão em planejamento ou em contratação e dois ainda não foram iniciados. 28 projetos, especialmente ligados à resposta imediata durante a crise, já foram finalizados.
Para Kazmierczak, há 16 projetos prioritários entre os 121 do Plano Rio Grande, incluindo revisão ou formulação de planos diretores e de contingência, implementação de novos radares meteorológicos e estações hidrometeorológicas, estudos de soluções baseadas na natureza e sete projetos de sistemas de proteção de cheias. Mas nenhum deles foi concluído até o momento. “Faz um ano do evento e nós continuamos com projetos importantes ‘em planejamento’.” Ele defende que muitos já deveriam ter começado e alguns já deveriam até estar finalizados.
Questionado, o governo do Rio Grande do Sul afirmou que “o andamento [do Plano Rio Grande] está satisfatório, dentro dos ritos legais do poder público” e que “grande parte dos projetos citados já está em fase de contratação”. O governo estadual afirma que, apesar de “respeitar a opinião dos especialistas” citados na reportagem, a avaliação de que nenhum dos projetos do plano é sobre prevenção “é um equívoco por parte de quem analisou os projetos”. Na nota, porém, o governo não especifica quais projetos poderiam ser considerados como sendo de prevenção.
Reforma do sistema de proteção ainda não saiu do papel
Até o momento, o governo gaúcho afirma ter empenhado R$ 5,4 bilhões na resposta à calamidade, “incluindo desde o custeio de ações emergenciais até os projetos estratégicos listados pelo Plano Rio Grande”. Há outros R$ 1,3 bilhão previstos no plano, totalizando cerca de R$ 6,7 bilhões. Os maiores montantes foram para uma polêmica concessão de um bloco de rodovias no Vale do Taquari e na região norte do estado (R$ 1,3 bilhão) e para a reconstrução de pontes e de estradas atingidas pelas enchentes (R$ 1,2 bilhão).
Parte significativa dos investimentos realizados no âmbito do plano de reconstrução do estado vem do Fundo do Plano Rio Grande (Funrigs), criado em junho do ano passado, em sua maioria, com recursos do adiamento da dívida do estado com a União. Ao todo, o montante destinado pelo governo federal por essa modalidade vai chegar a quase R$ 14 bilhões. Até o momento, segundo dados do Portal da Transparência gaúcho, foram utilizados R$ 1,7 bilhão do Funrigs.

Para Maneco Hassen, titular da Secretaria para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, do governo federal, o Plano Rio Grande “tem se ocupado muito de pequenas ações”. “São convênios com os municípios para desassoreamento, recapagem de estradas… São ações importantes, mas que não são para estruturar o desenvolvimento do estado pensando em novas tragédias”, afirma.
O deputado estadual Matheus Gomes, líder do PSOL na Assembleia Legislativa, também considera que “pouca coisa saiu do papel no Plano Rio Grande”. “Até o momento, é como se fosse uma carta de intenção. Tem avanços no que já estava minimamente estruturado, como a sala de situação, mas tem muita coisa que ainda está para começar. O estado ainda está fazendo o emergencial, não conseguiu passar para outro patamar”, diz o parlamentar.
O problema da habitação ainda está longe de ser resolvido, o sistema de monitoramento, previsão e alerta ainda não virou realidade, como mostrou reportagem da Pública, tampouco foram concluídas – ou sequer começaram, em alguns casos – as obras do sistema de proteção contra enchentes, como mencionou o procurador Fabiano de Moraes. A capital Porto Alegre, por exemplo, segue sofrendo com alagamentos toda vez que uma chuva um pouco mais forte ocorre.
“Nós não tivemos ainda a reforma das casas de bomba em Porto Alegre, nem a reforma dos diques de contenção na zona norte. O aeroporto ainda não teve as modificações no seu sistema específico de proteção contra as cheias [essa atribuição em específico, segundo nota do governo gaúcho, é do governo federal]. A cidade de Canoas, que foi proporcionalmente a mais atingida, também não teve reconstrução do dique concluída. Se cair um temporal [como o do ano passado], o Rio Grande do Sul estaria totalmente exposto às mesmas situações”, aponta Gomes.
Ele também questiona a manutenção de leis que afrouxaram as regras ambientais do Rio Grande do Sul e contribuíram para que a proporção do desastre fosse maior. “Eu apresentei uma lei, em julho do ano passado, para fazer uma revisão do Código Ambiental, que foi o que repercutiu mais nacionalmente. O projeto está parado”, diz.
Em relação ao sistema de proteção contra as cheias, o governo gaúcho afirmou que “como sempre foi enfatizado pelas fontes do governo do Rio Grande do Sul e por especialistas na área, não são obras feitas em curtos espaços de tempo” e que as do estado “estão em fase de revisão dos seus anteprojetos para adequação à nova realidade climática”.
Sobre habitação, destacou o programa “A Casa é Sua – Calamidade”, que vai entregar 422 casas no primeiro lote e outras 2.238 no segundo, além dos programas “Porta de Entrada”, que oferece subsídios de R$ 20 mil reais e de ampliação da participação do estado no “Minha Casa Minha Vida”, do governo federal.
Quanto ao afrouxamento das leis ambientais, afirmou que “a catástrofe de 2024 não pode ser atribuída à atualização de uma legislação estadual que datava dos anos 2000” e que as mudanças “[tiveram] como base amplas discussões que envolveram sociedade e instituições”.
O governo citou ainda uma série de medidas, incluindo planos de ação para a descarbonização, como o Plano ABC+, focado na agricultura de baixo carbono e o ProClima2050, “que reúne ações e políticas públicas pensando na mitigação das emissões, na adaptação e na resiliência climáticas”.
Falta de transparência e participação é questionada
Em sua governança, o Plano Rio Grande inclui um comitê gestor, capitaneado por Eduardo Leite, e um comitê científico, que conta com representantes de universidades e órgãos públicos. Tem também um conselho presidido pelo vice-governador do estado, Gabriel Souza (MDB), que conta com 182 membros, entre pessoas do poder público, da sociedade civil e atingidos pelas enchentes.
“O conselho reúne diversas entidades e movimentos porque, numa democracia, é essencial que tenhamos canais de interação organizados para que possamos colocar todos na mesma página”, disse o governador em junho do ano passado, na cerimônia de posse do organismo.
Se, no papel, sobra envolvimento da sociedade civil, na prática, várias fontes ouvidas pela Pública reclamam da falta de transparência e de participação social efetiva na condução do plano.

“A transparência no uso dos recursos do fundo de reconstrução está bem problemática. São dados de difícil acesso, mesmo para nós deputados”, afirma Matheus Gomes. “Também não há muitos ambientes em que a sociedade civil participa, dá opinião. Há um peso muito grande dos setores que são os maiores responsáveis pelas emissões [de gases do efeito estufa], principalmente o agronegócio”, diz.
Para Meirelles, do IPH/UFRGS, mesmo as universidades – que tiveram protagonismo na resposta inicial ao desastre e que, em tese, estão representadas nos órgãos participativos – têm sido menos acionadas. “Nós fomos muito chamados no começo do problema, mas agora estamos bem afastados da tomada de decisões. Me parece que o fluxo de demandas que passa pelo comitê científico está muito acanhado, muito deficitário. Poderíamos estar falando de ações mais estratégicas na parte de hidrologia, de climatologia, de gestão, mas não tenho visto essa movimentação acontecer, o que é estranho”, aponta.
O conselho consultivo do Plano Rio Grande inclui ainda 13 câmaras temáticas, como indústria, agricultura, educação, meio ambiente e habitação. Todas são coordenadas por secretários estaduais que atuam na respectiva área.
Doutora em sociologia pela UFRGS, com foco em mudanças climáticas e desastres, Lorena Fleury reclama da falta de “formas públicas de acompanhamento ou mesmo de participação e intervenção” nesses fóruns. “Não há transparência nenhuma sobre quem compõe as câmaras temáticas, o que elas têm produzido, qual o fluxo de apresentação e encaminhamento de demandas para transformá-las em ações executivos. Nada disso é documentado ou publicizado”, aponta.
Questionado acerca das críticas sobre falta de participação, o governo do Rio Grande do Sul respondeu que não iria comentar.
Outro ponto de crítica comum entre várias das fontes ouvidas pela reportagem é a falta de alinhamento entre prefeituras (especialmente a da capital Porto Alegre), o governo do estado e o federal.
“Não vejo um avanço em acertar o arranjo institucional, ‘quem faz o quê’. A gente vê muita ação duplicada da prefeitura de Porto Alegre e do governo do estado, não há uma sinergia. Estamos perdendo a oportunidade de criar uma estrutura mais lógica, um processo mais orgânico de gestão dos desastres”, afirma Fernando Meirelles.
Colega do docente no IPH/UFRGS, o também pesquisador Walter Collischonn é mais um que questiona o “desalinhamento” entre os diferentes entes executivos e critica a “corrida para ver quem aparece mais”. Ele cita iniciativas que estão sendo conduzidas concomitantemente, como o desenvolvimento de sistemas de monitoramento e previsão, tocado tanto pelo governo do estado quanto pelo de Porto Alegre.
“Isso pode levar a desperdício de recursos, nós não precisamos de dois sistemas que sejam medíocres. Seria melhor juntar esse recurso e fazer um sistema que seja integrado, funcional”, aponta o Collischonn, citando também a falta de diálogo entre governo estadual e federal, que estão planejando mapeamentos topográficos do estado de maneira paralela.
Para o procurador Fabiano Moraes, do MPF/RS, a disputa por protagonismo tem atrapalhado o processo de reconstrução. “As sobreposições de atuação e [a falta de] um órgão coordenador das três esferas governamentais são um problema desde o início e continuamos sem ter um plano que delimite exatamente o que cabe ao município, ao estado e à União em uma situação de calamidade como essa”, aponta.
Em relação às críticas sobre falta de transparência e de participação social efetiva no Plano Rio Grande, o estado afirmou que não iria comentar. Na nota enviada, entretanto, cita a existência do comitê científico e do conselho do plano, afirmando que “foram realizadas 19 reuniões de câmaras temáticas com a participação de cerca de 600 lideranças, que representaram mais de 300 entidades de todas as regiões do Estado”. Sobre a falta de sinergia com governos federal e municipais, disse “manter diálogo frequente com todos os envolvidos”.