Senha em fila, caronas e orientação a novatas: mulheres de presos criam rede informal para se apoiar e organizar dias de visita


g1 acompanhou fila de visitação em presídio do interior de São Paulo para mostrar como a união das mulheres viabiliza presença delas para os encarcerados. Comércio no entorno de presídio masculino se ‘especializa’ em visitantes mulheres
“Os arredores da prisão são femininos”. É assim que a antropóloga Natália Corazza Padovani, do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu-Unicamp, explica o que se vê no lado de fora das unidades prisionais brasileiras. Segundo a pesquisadora, as mulheres são verbo de ação em um sistema construído e sistematizado para homens.
No lado de fora do Complexo Penitenciário de Hortolândia, no interior de São Paulo – estado com a maior população carcerária do país, com 200.178 custodiados – elas representam 77% dos 14 mil visitantes cadastrados e são responsáveis por organizar toda a logística do final de semana, quando entram para rever parentes encarcerados.
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O g1 acompanhou um sábado de visitação na unidade e conversou com visitantes e comerciantes que criaram uma rede de apoio ajudar umas às outras. A seguir você vai ver que elas:
Mantêm grupos on-line que ajudam a distribuir senhas para organizar as filas no dia da visita;
Ajudam visitantes a encontrar meios de transporte e mobilizam caronas até a penitenciária;
Organizam abaixo-assinados para garantia dos direitos das visitantes e dos presos;
Orientam visitantes inexperientes, repassando os próprios aprendizados;
São comerciantes que oferecem de tudo para quem vai visitar um familiar encarcerado.
‘Dia de visita: a solidão da mulher no cárcere’
Na semana do Dia das Mulheres, o g1 publica a série especial “Dia de visita: a solidão da mulher no cárcere”, que aborda as diferentes relações e desafios que elas enfrentam diante o sistema prisional. Ao longo da semana, a série vai mostrar:
Relatos de mulheres que criaram uma rede de apoio e movimentam a economia local no entorno dos presídio
O que está por trás do abandono da mulher encarcerada segundo especialistas
Histórias na fila de mulheres que visitam homens em um complexo penitenciário de SP
Dados de visitação para mulheres e homens no sistema penitenciário
O encontro da reportagem, dentro do presídio, com mulheres sem visita há quase 3 anos
Mulheres ‘guias’ organizam dia de visita
O Complexo Penitenciário de Hortolândia é formado pelos centro de Detenção e de Progressão provisórios, CDP e CPP, e pelas Penitenciárias II e III – os três últimos chamados de P1, P2 e P3. Até o começo do ano passado a população chegava a 4.810 e estavam cadastrados 14.095 visitantes, sendo 77% mulheres, conforme dados do Sisdepen e da SAP.
A visitação é sempre aos sábados e domingos, das 8h às 16h. Para garantir um bom lugar na fila, não basta chegar cedo. O planejamento começa dias antes, como explica Mirtes Aparecida Costa. “Quarta-feira, 21h, o grupo da senha abre, aí a gente manda pelo WhatsApp um rascunho, que é o nome da gente ou do preso, o raio e a cela que vai visitar”.
O grupo em questão é administrado por ‘guias’, mulheres de presos que se voluntariam para organizar o dia de visita e dar suporte às novas visitantes. No dia, do lado de fora do complexo, é possível reconhecê-las pelas pranchetas que carregam nos braços. Quem se cadastrou é convocado pelo nome e recebe uma senha para formar a fila em ordem numérica.
Fila de visitantes do Complexo Penitenciário de Hortolândia é organizada com ajuda de grupo do WhatsApp
Estevão Mamédio/g1
Apesar de parecer uma obrigatoriedade para quem vê de fora, o arranjo é uma iniciativa adotada pelas próprias visitantes, sem qualquer orientação oficial, e que agiliza o grande dia. “Aí o número [senha] que você caiu, você vai entrar. Quanto mais cedo a gente entrar, mais tempo passa com o familiar”, completa Mirtes.
🔍 Entenda: para visitar uma pessoa presa no estado de São Paulo, basta ter o nome no rol de visitas da SAP. O esquema criado pelas visitantes é uma informalidade que elas adotaram para facilitar a formação da fila de entrada.
Também é por meio de grupos em redes sociais que as guias ajudam as visitantes a encontrarem transporte até o presídio, seja por meio de ônibus e vans, ou pelas caronas de quem ainda tem um espaço vago no próprio carro. Basta que alguém peça ajuda para que elas se mobilizem e troquem mensagens entre si até dar um jeito.
Abaixo-assinados e incentivo a denunciar ‘injustiças’
As guias também orientam sobre o que é ou não permito na visita e até organizam abaixo-assinados e mobilizam protestos quando acham necessário. No dia em que a reportagem acompanhou a visitação, centenas de mulheres assinavam pela proibição da revista vexatória, como é chamada a revista íntima que expõe e inspeciona as partes íntimas dos visitantes, e que está em debate no Supremo Tribunal Federal (STF).
A prática é vedada em São Paulo desde 2014 e foi substituída por escâner corporal, mas visitantes ouvidas pelo g1 dizem ter passado pelo procedimento no último ano, como é o caso de Ana Carolina. “Muitas vezes a gente é obrigado a entrar dentro do quartinho e tirar nossa roupa toda. Já ocorreu comigo por duas vezes. Elas fazem isso para eu provar que não tem nada dentro de mim”.
A reportagem pediu uma posição à SAP sobre a denúncia. A pasta afirmou que “todas as revistas realizadas nas unidades do Complexo Penal Campinas Hortolândia seguem rigorosamente os padrões estabelecidos pela legislação vigente”. Disse ainda que todas as unidades “contam com escâneres corporais, aparelhos de Raio-X e detectores de metal, que evitam contato físico para as revistas”.
Elas preparam as marmitas e deixam tudo no ‘padrão SAP’
Visitantes levam grandes bolsas transparentes com alimentos e outros produtos para familiares presos em Hortolândia
Yasmin Castro/g1
Com o nome na lista, é hora de montar o jumbo, como são chamados os kits de alimentos, produtos de higiene e de limpeza levados pelos familiares. As visitantes mais dedicadas até deixam de dormir na véspera ou aproveitam o jantar da noite anterior para preparar o prato favorito do preso.
Macarrão, frango frito, strogonoff e outras iguarias vão parar na marmita. E se engana quem pensa que toda essa comida é acomodada de qualquer jeito. Há regra para tudo que entra no presídio. As principais delas estão na ponta da língua de quem está habituado a visitar:
As marmitas devem ser montadas em vasilhas de plástico transparente;
O mesmo vale para as bolsas, que devem ser de material que permita ver o lado de dentro;
Também há norma para as roupas, que não podem ter detalhes metálicos ou serem azuis, pretas ou caquis (cores que lembram uniformes de agentes penais e presos);
Por isso, imperam os looks cor-de-rosa, lilás e azul bebê, formados por camisetões e calças legging.
Nem todas chegam sabendo. As mais novas contam com a ajuda das antigas, que avisam sobre qualquer impropriedade nas roupas ou bolsas. Por lá também estão comerciantes como Sara Diene, dona de uma barraquinha que vende de tudo um pouco na frente do complexo.
Ela está acostumada a ver meninas comprando potes transparentes às pressas e chega a dar descontos para ajudar quem não teria condição de comprar. “Às vezes, com o conhecimento que a gente tem e com experiência, a gente acaba orientando o pessoal”, afirma.
Uniformes para detentos, roupas para visitantes e guarda-volumes são oferecidos por comércios na frente do presídio
Yasmin Castro/g1
‘Os arredores da prisão são femininos’
Natália diz que, ainda que a seja pensado enquanto masculina, o sistema penitenciário é permeado por um protagonismo feminino invisível. “Assim como, por exemplo, a universidade. Mulheres estarem na universidade também são atos de subversão. É interessante pensar que o que suporta uma instituição como instituição penal, são essas redes de cuidado que estão sempre nos entornos das prisões”.
“Dessas mulheres que guardam as bolsas [para as visitantes], que ensinam as roupas com as quais você pode entrar dentro de uma prisão ou com as quais você não pode entrar dentro de uma prisão, que tem ali uma mudinha de roupa ou para emprestar ou para alugar, que são mulheres que têm o aprendizado de terem passado por isso”.
A rede criada pelas visitantes de Hortolândia não é exclusividade, de acordo com a pesquisadora, e se replica pelo Brasil. Por meio dela, pessoas que estão sob tutela do Estado acabam recebendo um suporte que deveria vir de órgãos oficiais. “Nós, enquanto sociedade, atribuímos ao Estado a função de tutelá-las, de cuidá-las, de mantê-las vivas e sãs”.
“Mas o que a gente vê é que quem suporta com cuidado e quem mantém a instituição prisional ainda são essas redes de aprendizado, de afeto, que vão sendo criadas nos entornos das prisões e que são femininas”.
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