Papa Francisco: “Se você quer saber o que um povo sente, vá à periferia”

Em 2022, uma conversa do Papa Francisco com a agência de notícias argentina Telám (dissolvida pelo presidente Javier Milei em 2022) deixou claro por que ele é atacado e chamado de “comunista” pela extrema direita. Mario Bergoglio falou sobre assuntos caros à América Latina, como o papel social da Igreja e as periferias. Em um contexto de consolidação da extrema direita e seguindo os pontificados de dois papas conservadores — Bento XVI e João Paulo II — Mario Bergoglio manteve posições da Igreja Católica sobre a condenação ao aborto, mas tem um olhar crítico sobre a associação da tecnologia com a comunicação e sobre os perigos das mudanças climáticas: “O aquecimento do planeta nos tira da construção de uma sociedade justa e fraterna”, ele disse à jornalista Bernarda Llorente.

Hospitalizado na Itália há quase três semanas, por causa de sucessivas crises respiratórias graves, o estado de saúde de Francisco suscita debate sobre sua sucessão e sobre o futuro da Igreja após o primeiro papa latino-americano. 

A entrevista foi editada para propósitos de clareza a partir da tradução publicada no Instituto Humanitas Unisinos. A íntegra pode ser assistida aqui.  

Pós-pandemia

Muitos pensavam que a pandemia havia marcado limites: a extrema desigualdade, a despreocupação com o aquecimento global, o individualismo exacerbado, o mau funcionamento dos sistemas políticos e de representação. No entanto, existem setores que insistem em reconstruir as condições do período pré-pandêmico.

Não estou gostando de como estamos. Em alguns setores evoluímos, mas, em geral, não me agrada. Veja, o fato de a África não ter tido vacinas ou ter tido acesso a pouquíssimas doses significa que a salvação contra a doença foi dosificada por outros interesses. Isso indica que algo não funcionou.

Não podemos voltar à falsa segurança das estruturas políticas e econômicas que tínhamos antes. Assim como digo que da crise não se sai igual, mas que se sai melhor ou pior, digo que da crise não se sai sozinho. Ou saímos todos, ou não sai ninguém. Se sai arriscando e dando a mão ao outro. Aí está o social da crise. 

Esta é uma crise civilizacional. E ocorre que a natureza também está em crise. Recordo que há alguns anos recebi vários chefes de Estado e de governo dos países da Polinésia. Um deles dizia: “Nosso país está pensando em comprar terras em Samoa. Em 25 anos talvez não existamos mais, porque o nível do mar está aumentando muito”. Não nos damos conta, porém há um ditado espanhol que me tem feito pensar: Deus sempre perdoa. Fiquem tranquilos que Deus perdoa sempre e nós, os homens, perdoamos de vez em quando. Porém, a natureza não perdoa nunca. A natureza cobra. Se você utiliza a natureza, ela te responde.

O aquecimento do planeta também nos tira da construção de uma sociedade justa e fraterna. Não estamos vivendo em harmonia com o universo, com a Criação. E a golpeamos cada vez mais. Usamos mal as nossas forças. Tem gente que não imagina o perigo que hoje a humanidade vive com o aquecimento e o manuseio da natureza.

Na encíclica Laudato Si’, você adverte que muitas vezes se fala de ecologia, mas separando das condições sociais e de desenvolvimento. Quais seriam essas novas regras em termos econômicos, sociais e políticos?

Tudo está interligado, é harmônico. Não se pode pensar a pessoa humana sem a natureza, tampouco a natureza sem a pessoa humana. É como aquela passagem do Gênesis: “Cresçam, multipliquem-se e dominem a Terra”. Dominar é entrar em harmonia com a Terra para fazê-la frutificar. E nós temos essa vocação. Há uma expressão dos indígenas da Amazônia que me encanta: o “bem-viver”. Trata-se de viver em harmonia com a natureza. Quando me diziam que a Laudato Si’ era uma linda encíclica ambiental, eu contestava, pois se trata de uma “encíclica social”. Porque não podemos separar o social do ambiental. A vida dos homens e das mulheres se desenvolve no meio ambiente.

Repito: a natureza não perdoa nunca, não porque seja vingativa, mas porque executamos processos de degeneração que não estão em harmonia com nosso ser. Há alguns anos fiquei chocado quando vi a foto de um barco que havia passado pelo Polo Norte pela primeira vez. O Polo Norte navegável! O que isso quer dizer? Que os gelos estão derretendo devido ao aquecimento. Quando percebemos essas coisas precisamos pará-las.  

Jovens, política e discurso de ódio

Considera que parte da frustração de alguns jovens faz com que sejam seduzidos por discursos de ódio e opções políticas extremas?

O mundo político é esse choque de ideias, de posições, que nos purifica e nos faz irmos adiante juntos. Os jovens têm que aprender esta ciência da política, da convivência, porém também da luta política que nos purifica de egoísmos e nos leva adiante. É importante ajudar os jovens nesse compromisso sociopolítico e, que também não sejam ingênuos. Ainda que hoje em dia, creio que a juventude está mais avivada.  

Eu confio muito na juventude. “Sim, porém, eles não vêm à missa”, disse-me um padre. Eu respondo que é preciso ajudá-los a amadurecerem e acompanhá-los. Depois, Deus falará a cada um. Porém, é preciso deixá-los crescer. Se os jovens não forem os protagonistas da História, estamos fritos. Porque eles são o presente e o futuro.

Desde 2014 você já afirmava que o mundo estava entrando em uma Terceira Guerra Mundial e hoje (2022) a realidade não faz mais que confirmar seus prognósticos. A falta de diálogo e de escuta são um agravante na situação atual?

A expressão que utilizei aquela vez foi “guerra mundial em capítulos”. Estamos vivendo de perto a guerra na Ucrânia e por isso nos alarmamos. Porém, pensemos em Ruanda há 25 anos, na Síria nos últimos dez anos, no Líbano ou Myanmar. Isto está ocorrendo há tempos. Uma guerra, lamentavelmente, é uma crueldade cotidiana. Na guerra não se dança o minueto, mata-se. E há toda uma estrutura de venda de armas que favorece. Uma pessoa especialista em estatística me disse, não me recordo dos números exatos, que, se em um ano não fossem fabricadas armas, não haveria fome no mundo.

Chegou o momento de repensar o conceito de “guerra justa”. Eu declarei que o uso e a posse de armas nucleares são imorais. Resolver as coisas com uma guerra é dizer não à capacidade de diálogo que os homens possuem. Não sabemos nos escutar. Não permitimos ao outro que diga sua opinião. Mas é preciso escutar.  

A crise das instituições

Os organismos multilaterais estariam falhando ante estas guerras? É possível conseguir a paz com eles?  

Após a Segunda Guerra Mundial havia muita esperança nas Nações Unidas. Não quero ofender, sei que tem gente muito boa que trabalha lá, mas nesse momento [a ONU] não tem o poder de se impor. Ajuda a evitar guerras, mas parar uma guerra, resolver uma situação de conflito como a que vivemos hoje na Europa, ou como as vividas em outras partes do mundo, não tem poder. Sem ofensa. É que a constituição que a ONU tem não lhe dá poder.

Neste momento, coragem e criatividade são necessárias. Sem essas duas coisas, não teremos instituições internacionais que possam nos ajudar a superar esses graves conflitos, essas situações mortais.

A Igreja Católica na América Latina e as periferias

Você conseguiu cumprir todos os seus objetivos? Quais projetos estão pendentes?

[…] Hoje há uma experiência do tipo missionário. Preguem a palavra de Deus. Em outras palavras, o essencial é sair. A Igreja latino-americana tem uma história de proximidade com o povo muito grande. Se tomarmos as conferências episcopais – Medelín (Colômbia), depois Puebla (México), Santo Domingo (República Dominicana) e Aparecida – foi sempre em diálogo com o povo de Deus. E isso ajudou muito. É uma Igreja popular, no verdadeiro sentido da palavra. É uma Igreja Povo de Deus, que se desnaturalizou quando o povo não conseguia se expressar e acabou sendo uma Igreja de capatazes de estâncias, com os agentes pastorais que governavam. O povo se expressou cada vez mais religiosamente e acabou sendo o protagonista de sua história.

Em parte, foi isso que a Igreja latino-americana experimentou, embora tenha tido tentativas de ideologização, como instrumento de análise marxista da realidade para a Teologia da Libertação. Foi uma instrumentalização ideológica, um caminho de libertação da Igreja popular latino-americana. […] Mas é uma Igreja que pode e deve expressar cada vez mais sua piedade popular, por exemplo, sua religiosidade e sua organização popular.

Quando você descobre que os Misachicos [Misachicos são pequenas procissões organizadas por famílias ou grupos carregando a imagem de um santo, típico do noroeste da Argentina] descem de 3 mil metros até os santos padroeiros do Milagre de Salta, há uma entidade religiosa, isso não é superstição, porque eles se identificam com ela. A Igreja latino-americana cresceu muito nisso. E é também uma Igreja que soube cultivar as periferias, porque de lá se vê a verdadeira realidade.

Por que a verdadeira transformação vem da periferia?

Fiquei impressionado com uma conferência que ouvi de Amelia Podetti, uma filósofa já falecida, que disse: “A Europa viu o Universo quando Fernão de Magalhães chegou ao Sul”. Em outras palavras, a Europa se entendeu a partir da maior periferia. A periferia nos faz entender o centro. Se você quer saber o que um povo sente, vá para a periferia.

As periferias existenciais, não só as sociais. Os aposentados, as crianças, os bairros, as fábricas, as universidades, onde se vive o dia a dia. Aí está o povo. Os lugares onde as pessoas podem se expressar com maior liberdade. Para mim isso é fundamental. Uma política do povo que não é populismo.  

Nos últimos anos, a América Latina começou a mostrar alternativas ao neoliberalismo baseadas na construção de projetos populares e inclusivos. Como você vê a América Latina como região?

A América Latina continua nesse caminho lento, de luta, do sonho de San Martín e Simon Bolívar pela unidade da região. Sempre foi e será vítima até que seja totalmente libertada do imperialismo explorador. Isso é o sonho que todos os países têm. O sonho de San Martín e Bolívar é uma profecia, esse encontro de todo o povo latino-americano, além da ideologia, com a soberania. É isso que deve ser trabalhado para alcançar a unidade latino-americana, onde cada povo sente sua identidade e, ao mesmo tempo, necessita a identidade do outro. Não é fácil.

Manipulação midiática

Talvez você seja a voz mais importante do mundo em termos de liderança social e política. Às vezes sente que, pela sua voz dissonante, você tem a possibilidade de mudar muitas coisas?

Às vezes eu sentia que era dissonante e acho que minha voz pode mudar. Digo o que sinto diante de Deus, diante dos outros, com honestidade e com desejo de servir. Não estou tão preocupado se isso vai ou não mudar as coisas. Me convém mais dizer as coisas e ajudá-los a mudar por conta própria. Acredito que há uma grande força no mundo, e na América Latina em particular, para mudar as coisas.

O mundo tornou-se cada vez mais desigual e isso também se reflete nos meios de comunicação, a partir de uma grande concentração de plataformas digitais e redes sociais cada vez mais poderosas na produção do discurso. Nesse contexto, qual deveria ser o papel da mídia?

Temos que estar muito conscientes de que comunicar é envolver-se e estarmos muito conscientes da necessidade de se envolver bem. A objetividade, por exemplo. Eu comunico alguma coisa e digo: “Isso aconteceu, eu acho isso”. É aí que eu me coloco, e me abro para a resposta do outro. Mas se comunico o que aconteceu fazendo recortes, e sem dizer que estou fazendo esses recortes, sou desonesto porque não comunico a verdade. Não se pode se comunicar objetivamente uma verdade porque se eu a estou comunicando, vou colocar meu viés nisso. É por isso que é importante distinguir entre “isso aconteceu” versus “eu acho que é isso”. Hoje, infelizmente, o “eu acho” distorce a realidade. E isso é muito sério. 

A tecnologia é muitas vezes atribuída a uma certa vida própria, como responsável por males que são cometidos além do uso que é feito. Como recuperar o humanismo neste mundo altamente tecnológico?

Olha, uma sala de cirurgia é um lugar onde a tecnologia é usada a milímetro. E ainda, quais cuidados são tomados em uma intervenção cirúrgica por meio das novas tecnologias. Porque há uma vida no meio que deve ser cuidada. O critério é este: que a tecnologia sempre veja que está trabalhando com vidas humanas. Você tem que pensar nas salas de cirurgia. Essa é a honestidade que devemos ter sempre, mesmo na comunicação. Há vidas no meio. Não podemos fazer as coisas como se nada tivesse acontecido.

Bergoglio e Francisco

Como o Papa vê Bergoglio e como Bergoglio veria Francisco?

Bergoglio nunca imaginou que acabaria aqui. Nunca. Cheguei ao Vaticano com uma mala pequena, com o que estava vestindo e um pouco mais. Além disso, deixei os sermões preparados para o Domingo de Ramos em Buenos Aires. Eu pensei: “Nenhum Papa vai tomar posse no Domingo de Ramos, então no sábado eu viajo de volta para casa”. E quando vejo o Bergoglio de lá e toda a sua história, as fotografias falam. É a história de uma vida que andou com muitos dons de Deus, muitos fracassos de minha parte, muitas posições que não são tão universais.

Você sente que mudou muito sendo Papa?

Alguns me dizem que coisas que estavam no centro da minha personalidade vieram à tona. Que eu me tornei mais misericordioso. Na minha vida tive períodos rígidos, que exigiam muito. Mais tarde eu percebi que você não vai por esse caminho, que você tem que saber dirigir. É essa paternidade que Deus tem. [..] Esse saber esperar pelos outros, típico de um pai. Ele sabe o que está acontecendo com você, mas ele quer que você simplesmente vá, e está esperando por você como se nada tivesse acontecido. É um pouco o que eu criticaria hoje sobre aquele Bergoglio. Quando eu era jesuíta eu era muito severo. E a vida é bela com o estilo de Deus, sabendo esperar sempre.  

Você está ótimo, Francisco. Teremos o Papa e o Francisco por mais um tempo?

O [Deus] lá de cima é quem diz.

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