Samba-enredo mais executado do Brasil tem herança ‘esquecida’ de até R$ 300 mil e briga  judicial por autoria

Cantado pela União da Ilha do Governador no carnaval de 1982 e depois regravado por artistas como Caetano Veloso, Fernanda Abreu e Diogo Nogueira, “É Hoje” foi o samba-enredo mais executado no Brasil nos últimos dez anos Samba-enredo mais executado do Brasil tem herança ‘esquecida’ e briga  judicial por autoria
Cantado pela União da Ilha do Governador no carnaval de 1982 e depois regravado por artistas como Caetano Veloso, Fernanda Abreu e Diogo Nogueira, “É Hoje” foi o samba-enredo mais executado no Brasil nos últimos dez anos, segundo levantamento do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição dos direitos autorais (Ecad).
Oficialmente, a música foi escrita pelos compositores Didi (Gustavo Adolfo de Carvalho Baeta Neves) e Mestrinho (Reinaldo Ferreira dos Santos) – já falecidos. Porém, tanto tempo depois do seu lançamento, a obra ainda guarda mistérios não esclarecidos: em 2024, um terceiro compositor entrou com um processo na Justiça do Rio de Janeiro alegando ser parceiro da dupla; e há uma herança “esquecida” de até R$ 300 mil aguardando ser resgatada por algum herdeiro de Mestrinho.
“É Hoje” passou pela primeira vez na avenida em1982, quando a União da Ilha terminou em quinto lugar do Grupo 1A (atual Grupo Especial). Em 2008, o samba foi reeditado no Grupo A (atual Série Ouro) e a escola também ficou na quinta posição. Didi e Mestrinho sempre foram creditados como únicos autores da música. Mas isso pode mudar. Em abril de 2024, Almir Juliasse de Souza, o Almir da Ilha, entrou com uma ação na 4ª Vara Empresarial da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro contra o Ecad e a União Brasileira dos Compositores (UBC) alegando também ser parceiro da obra.
Em nota, o Ecad informou “que os valores relativos à execução pública da música ‘É hoje’ têm sido regularmente distribuídos para os titulares que constam no seu cadastro musical, que é alimentado pelos próprios titulares junto às suas respectivas associações de música”. Procurada, a UBC não quis se pronunciar.
A briga na Justiça pela autoria
Almir tem 74 anos, é o compositor mais antigo em atividade na União da Ilha e foi um dos autores dos sambas-enredo da escola nos carnavais de 1994, 1995, 1998, 2001, 2003 e 2023. Ele alega ter participado da parceria com Didi e Mestrinho no segundo semestre de 1981, mas que não pôde assinar a autoria de “É Hoje” por problemas com a Ala de Compositores da agremiação na época.
“Eu tinha entrado na ala, mas eles acharam que a minha entrada tinha sido irregular. Fizeram uma votação e falaram que era ilegal. Eu já estava desenvolvendo o samba com o Didi, mas aí a ala me tirou e eu acabei não assinando o samba. Eu que coloquei o Mestrinho nessa parceria”, garante Almir.
O enredo da União da Ilha de 1982 foi criado pelo carnavalesco Max Lopes, com base no livro “É Hoje!”, do caricaturista italiano Lan e do escritor Haroldo Costa. De acordo com Almir, o verso “É hoje o dia da alegria e a tristeza nem pode pensar em chegar”, por exemplo, foi incluído por ele na letra após uma conversa com Max. Almir também alega que teve a inspiração para a frase inicial do samba.
“Eu sabia que o Max queria fazer o carnaval da União com uma grande barca, atravessando o mar. Aí eu vim com uma ideia pra mostrar pro Didi, já que eu trabalhava em navio: ‘A minha alegria atravessou o mar e ancorou na passarela…’. Mostrei pro Didi e a partir disso começamos a fazer o samba, ele já veio com o negócio de ‘maior show da terra” e juntamos”.
No processo, o compositor anexou um documento assinado por cinco testemunhas que garantem que Almir fez o samba com Didi e Mestrinho – mas nenhum deles presenciou os três compondo juntos. São pessoas da Velha Guarda da escola, que conviveram com os envolvidos no caso e têm como base a memória daquela época.
“Realmente é difícil você conseguir este tipo de prova, por isso que a gente fez essa declaratória, que é uma prova junto à Justiça de que eles tinham conhecimento de que o Almir foi um dos compositores. Mas todo o trabalho que foi desenvolvido foi baseado na jurisprudência dos tribunais”, explica o advogado Walter Bastos Küllinger, que representa Almir na ação. “Por mim, eu não tinha entrado na Justiça, foi o pessoal da escola que me procurou e falou para eu buscar os meus direitos. Eu não estou nem reivindicando por dinheiro, quero reconhecimento”, completa Almir.
A ação movida pede que o Ecad e a UBC incluam Almir como parceiro do samba, sem retirar Didi e Mestrinho dos créditos. Assim, os direitos autorais seriam divididos pelos três – caso Almir saia vitorioso dos tribunais. Antes de entrar na Justiça, o veterano compositor diz que em 2008 (quando houve a reedição) entrou em contato com o escritor Alberto Mussa, sobrinho de Didi, para tentar ser incluído na parceria amigavelmente. Segundo Almir, o escritor teria conhecimento da sua participação em “É Hoje”.
Mussa tinha uma relação muito próxima com o tio e costumava acompanhá-lo nas disputas de samba durante a década de 1980. Acabou virando um guardião das memórias e sambas de Didi na família. Apesar da alegação de Almir, ele não confirma que sabia da presença de mais um parceiro em “É Hoje”.
“Eu não testemunhei, não ouvi. Não me lembro de nada nesse sentido. Eu não tenho nada contra o Almir, acho que ele é uma pessoa muito boa, digna. Mas eu não posso testemunhar uma coisa que eu não presenciei”, diz Mussa, que além de sobrinho de Didi é pesquisador de carnaval e samba-enredo, foi jurado do prêmio “Estandarte de Ouro” do jornal “O Globo” e escreveu o livro “Samba de enredo: história e arte” (com Luiz Antonio Simas).
“Já são mais de 40 anos desse samba, o Almir me procurou 20 anos depois da morte do meu tio… É um tempo considerável. Por que uma pessoa espera tanto tempo assim para fazer essa reivindicação? Quem poderia se contrapor? Didi e Mestrinho estão mortos, né?”, questiona o escritor.
Didi era o apelido do advogado Gustavo Adolfo de Carvalho Baeta Neves, que chegou a ser procurador de Justiça. Ficou famoso no meio do carnaval por ter composto 16 sambas-enredo para a União da Ilha e quatro para o Salgueiro, enquanto dividia a vida com a carreira jurídica – mesmo contra a vontade de boa parte da família. Morreu em 1987, poucos meses depois de sua última obra ter passado pela avenida (“E por que não?”, do Salgueiro). Como não teve filhos ou viúva, seus direitos autorais são repartidos entre os quatro irmãos (e descendentes).
A herança “perdida” de Mestrinho
Pouco se sabe sobre a vida e desaparecimento de Reinaldo Ferreira dos Santos, o Mestrinho. Até o início da apuração dessa reportagem, componentes da União da Ilha, familiares de Didi e até o Ecad não tinham conhecimento de parentes do compositor. Assim, o repasse dos direitos autorais não é feito. “Sabemos que tem um dinheiro parado, mas não tem um representante para buscar. Uma vez o Ecad bateu lá na União perguntando se alguém sabia sobre a família, foi feito até um vídeo, mas ninguém apareceu”, lembra o intérprete Ito Melodia, que foi titular do microfone da União da Ilha por 21 carnavais e atualmente está na Unidos da Tijuca.
O dinheiro arrecadado com a execução de qualquer música no Brasil fica retido no Ecad pelos últimos cinco anos – ou seja, em 2025 só há disponível o valor obtido desde 2020, e a quantia não resgatada dos anos anteriores é redistribuída pelo escritório. Pela apuração, a soma dos direitos de “É Hoje” destinada a Mestrinho pode chegar a R$ 300 mil.
O que aconteceu com o parceiro de Didi? “Essa é uma pergunta que ninguém consegue responder”, afirma Marquinhos do Banjo, diretor musical da União da Ilha e componente da escola há 44 anos. “São várias histórias, cada um fala uma coisa. Ninguém tem registro concreto do que aconteceu, sabe? Dizem que mataram ele, mas não sabem quem… Uns falam que foi em Minas Gerais, outros que foi no Rio”, completa Ito.
A reportagem localizou um familiar de Mestrinho, mas nenhuma resposta concreta foi encontrada. O motorista Victor Hugo Rangel é sobrinho-neto do compositor (seu avô, também já falecido, era irmão do compositor). Victor tentou a carreira de cantor e chegou a acompanhar Mestrinho em algumas disputas de samba-enredo da União no início dos anos 90. Cansou de dormir na casa do tio-avô após virar a madrugada na quadra da escola. “Um dia me ligaram e falaram: ‘Seu tio morreu’. E aí? Não soube de velório, não soube de sepultamento”, lembra Victor.
Segundo o motorista, o desaparecimento de Mestrinho aconteceu entre 1994 e 1995: “Só sei que ele era um homem bom. Era um cara que vivia para o samba, era humilde. E ele me deixou como seu herdeiro musical. Eu faço shows por aí e sempre faço questão de cantar ‘É Hoje’ e dizer que é do meu tio”.
Mas e a herança? Quem pode receber os direitos autorais de Mestrinho? Victor Hugo diz que o tio-avô deixou filhos, mas que sua parte da família não tem contato com os herdeiros há mais de 20 anos. “Ele deixou quatro filhos, que eu saiba. Estou tentando entrar em contato, mas está difícil. Eu não sabia dessa questão dos direitos. E isso não cabe a mim”. Já que há herdeiros diretos de Mestrinho, outros parentes (como irmãos e sobrinhos) não poderiam reivindicar o dinheiro.
A reportagem teve dificuldades para encontrar imagens de Mestrinho. Após mobilizar várias pessoas da União da Ilha, apenas uma foto foi encontrada, cedida pelo compositor Sydney Myngal. No Acervo da TV Globo, há poucos segundos de Mestrinho na quadra da União durante um ensaio em 1982, logo após a escolha do samba-enredo. Guardador de carro, mecânico… Até a profissão de Mestrinho é motivo de dúvidas entre as pessoas que o conheceram.
“Ele foi uma das melhores pessoas que eu conheci na vida. Era um cara sensacional, um coração puríssimo. Foi uma perda para a humanidade, porque ele era uma pessoa maravilhosa, estava sempre de bom humor. Pode ter a vida mais difícil do mundo, mas o cara estava lá, feliz”, lembra Alberto Mussa.
Samba-enredo mais executado no Brasil
Há registros de 49 gravações de “É Hoje” cadastradas no banco de dados da gestão coletiva de direitos autorais do Brasil. Após o carnaval de 1982, o primeiro artista a regravar o samba-enredo foi Caetano Veloso, no disco “Uns”, de 1983. Em 1996, Fernanda Abreu registrou no álbum “Da Lata” uma versão “samba-funk”, que chegou a ser trilha sonora de comercial de sandália.
“Eu vi esse desfile da Ilha na avenida. Foi um estrondo. Depois, o Washington Olivetto (publicitário) me convidou para participar de uma campanha e escolhemos ‘É Hoje’ para ser a música. Até hoje eu canto nos meus shows, tem quase 30 anos. É um samba que eu acho maravilhoso em todos os quesitos, harmonia, melodia, letra. Quando eu canto, a galera vai à loucura. Quem não quer dizer ‘É hoje o dia da alegria e a tristeza nem pode pensar em chegar?”, diz Fernanda Abreu.
A pedido da reportagem, o Ecad fez um levantamento das 30 músicas mais tocadas no segmento “Shows de carnaval” nos últimos dez anos no Brasil e “É Hoje” apareceu como o samba-enredo melhor colocado (24º), superando outro fenômeno de popularidade: “Peguei um Ita no Norte”, do famoso refrão “Explode Coração do Salgueiro”. O ranking de ”Shows de carnaval” leva em consideração as músicas mais tocadas em shows e trios elétricos no carnaval em todo o Brasil no período de pré-folia até os últimos eventos do período carnavalesco.
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