Juiz manda soltar suspeito de agredir a companheira e afirma que decisão que determinou prisão foi baseada em ‘feminismo punitivista’


Disse ainda que, nesse caso, a prisão poderia comprometer a própria credibilidade do sistema de justiça. Suspeito foi indiciado pela Polícia Civil pelos crimes de lesão corporal, ameaça e injúria. Juiz manda soltar preso por entender que decisão foi por ‘feminismo punitivista’
Uma decisão da Justiça de Goiás mandou soltar um homem indiciado por agredir a companheira com uma boneca, em Águas Lindas de Goiás, no Entorno do Distrito Federal. Em justificativa, o juiz Felipe Morais Barbosa ponderou que a decisão inicial que decretou a prisão preventiva foi baseada em um “feminismo punitivista”. Disse ainda que, nesse caso, a prisão havia sido foi pedida pela polícia e pelo Ministério Público e, por isso, poderia comprometer a própria credibilidade do sistema de justiça.
“A justiça feminista não pode ser confundida com a ampliação indiscriminada do poder punitivo estatal. A sanha punitivista, muitas vezes impulsionada por um desejo legítimo de proteção às vítimas, não pode se sobrepor ao respeito às regras processuais, sob pena de comprometer a própria credibilidade do sistema de justiça”, disse o juiz.
“Interpretar que o juiz pode, de ofício, mesmo com manifestação expressa do Ministério Público pela liberdade e sem pedido autoridade policial de prisão, viola o sistema acusatório”, complementou ao g1.
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A decisão que pediu a liberdade provisória do suspeito foi emitida no dia 12 de fevereiro, mesmo dia em que foi realizada a audiência de custódia. No dia anterior, o juiz Felipe Morais já havia concedido medidas protetivas de urgência à mulher.
Ao g1, o juiz ainda destacou que a decisão “está longe de criticar o feminismo” e que todas as citações são de expoentes feministas. Disse ainda que, no documento, apenas fez uma ponderação sobre uma vertente dentro do movimento feminista, que é denominada “feminismo punitivista”.
A reportagem não localizou a juíza que converteu a prisão do suspeito em preventiva para comentar o caso. Já o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO) disse que não fala sobre decisões judiciais. O g1 ainda entrou em contato com o Ministério Público de Goiás (MP-GO) por e-mail para que o órgão possa comentar o caso, mas não obteve retorno até a última atualização desta reportagem.
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Nariz de mulher agredida por companheiro e boneca usada em agressão, em Águas Lindas de Goiás
Reprodução/TV Anhanguera
Violência contra mulher
Segundo relatório policial, o homem é suspeito de agredir a companheira no rosto com o uso de uma boneca após uma crise de ciúmes. Ele foi preso pela Polícia Militar no dia 10 de fevereiro e depois ficou à disposição da Justiça. O g1 não conseguiu localizar a defesa do suspeito para um posicionamento até a última atualização desta reportagem.
A Polícia Civil ainda detalhou que, conforme relatório médico, com as agressões, a mulher teve lesões na parte superior do nariz e no lado esquerdo da testa. No boletim de ocorrência ainda é detalhado que ela teria sido xingada de diversas formas e ameaçada de morte pelo suspeito.
Ao g1, a delegada Tamires Teixeira informou que o inquérito já foi concluído e que o suspeito foi indiciado pelos crimes de lesão corporal, ameaça e injúria.
Conversão da prisão em preventiva
Após a prisão em flagrante do suspeito, a polícia fez o requerimento de medidas protetivas de urgência em face da vítima, que foram deferidas pelo juiz Felipe Morais no dia seguinte ao pedido. Em seguida, no dia 12, o homem passou por audiência de custódia durante o período da manhã.
Durante a audiência, o Ministério Público se manifestou pela liberdade provisória do suspeito com a imposição de medidas cautelares a serem cumpridas por ele. No entanto, a juíza Lívia Vaz da Silva considerou a existência de provas da materialidade do crime (a prisão em flagrante, o laudo médico e os depoimentos iniciais) e justificou a conversão da prisão em preventiva com fundamento na garantia da ordem pública.
“A aparente gravidade concreta da conduta denunciada, aferida pelas suas circunstâncias e consequências, a ponto de colocar a vida e a integridade física e psíquica da vítima em risco de violação, justifica a restrição cautelar da liberdade de locomoção do autuado, mormente quando ainda não realizada a instrução processual, bem como revelando a insuficiência das cautelares diversas da prisão”, disse a juíza no documento.
Determinação de liberdade provisória
No mesmo dia da audiência, já no período da noite, o juiz Felipe Morais Barbosa, determinou a expedição do alvará de soltura do investigado e determinou o cumprimento de medidas cautelares por 90 dias. Entre elas, proibiu o suspeito de se contatar ou se aproximar da vítima e familiares, de frequentar a casa ou o trabalho dela, entre outras medidas.
No documento, o juiz explicou que, nesse caso, o a conversão da prisão em preventiva encontrava “óbice no sistema judicial” (ou seja, um empecilho perante a lei), uma vez que teria sido determinada “sem requerimento expresso do órgão acusador”, que seria o Ministério Público ou a Polícia Civil.
Na decisão, Felipe Morais considerou a violência de gênero como uma das mais graves violações dos direitos humanos e que, por isso, é válido que magistradas (por estarem inseridas em um contexto social estruturalmente machista) demonstrem empatia e compromisso com a proteção das vítimas. No entanto, ponderou que a proteção às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar deve ocorrer sem que as garantias processuais sejam renunciadas.
“A história demostra que não colhemos bons frutos quando o Estado Juiz passa a agir com lógica policialesca, com a lógica do encarceramento, ainda que na defesa dos vulneráveis. Além de poder comprometer a imparcialidade, pela própria lógica da “dissonância cognitiva” a população mais vulnerável tende a ser a mais afetada”, complementou ao g1.
Destaque da decisão que determinou a liberdade provisória de investigado por agredir a companheira, em Águas Lindas de Goiás
Reprodução/TV Anhanguera
À reportagem, a delegada Tamires Teixeira, que é titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher e é responsável pela investigação do caso, citou um dispositivo na Lei Maria da Penha que permite ao juiz decidir pela prisão preventiva mesmo sem pedido do Ministério Público ou da autoridade policial.
“Entretanto, o entendimento majoritário é de que esse dispositivo teria sido revogado pelo Pacote Anticrime, principalmente após a súmula 676 do STJ [Superior Tribunal de Justiça] que proíbe essa decretação de prisão espontânea pelo juiz. Entretanto, creio que a magistrada tenha se utilizado desse dispositivo como fundamento jurídico para essa conversão em preventiva na audiência de custódia”, destacou a delegada.
Sobre esse dispositivo, o juiz Felipe Morais explicou ao g1 que a lei prevê que o juiz pode decretar a prisão preventiva em casos de urgência em que não fosse possível colher a manifestação do Ministério Público de Goiás em tempo hábil. Como exemplo, ele mencionou que existem comarcas que não possuem promotores de justiça titulares.
“Situação diametralmente oposta é quando em uma audiência [está] presente o representante do Ministério Público [e] esse se manifesta expressamente pela liberdade do autuado argumentando que não seria caso de prisão preventiva”, complementou.
“Se desejamos construir uma sociedade menos violenta, não faz sentido validar a violência como única resposta possível, o que inclui a própria violência institucional exercida pelo Estado quando descumpre princípios e normas constitucionais. Como aponta Ângela Davis, o punitivismo estatal frequentemente se coloca como uma falsa solução para problemas estruturais, reforçando um sistema que não erradica a violência, mas a reproduz de forma seletiva e discriminatória.
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