“Anjo da morte”: Como médico nazista Josef Mengele viveu com regalia por 18 anos no Brasil

O médico nazista mais procurado do mundo, Josef Mengele, viveu por quase duas décadas no Brasil e, nos anos de 1960, chegou a estar na mesma vizinhança que ao menos uma das sobreviventes do maior campo de extermínio nazista, Auschwitz-Birkenau, em Serra Negra (SP), a 150 km da capital paulista. A história contada no livro Baviera tropical, de Betina Anton, que conversou com vítimas de Mengele, volta a ganhar relevo no aniversário de 80 anos do fim do campo de concentração após ação de tropas soviéticas.

Mengele condenou centenas de milhares de pessoas à morte e realizou experimentos macabros que marcaram quem sobreviveu. Higienista e crente na superioridade da “raça ariana”, ele tinha predileção por usar gêmeos, anões e pessoas com deficiência em seu laboratório. Anos depois da derrota da Alemanha, o médico nazista morou no Brasil, na década de 1960, onde encontrou apoio e proteção.

Por que isso importa?

  • Jogar luz em histórias de impunidade de integrantes de regimes que promovem violações de direitos humanos ajuda a respeitar a memória e a experiência de sobreviventes e a pressionar autoridades para que não permitam que abusos se repitam.

Mengele fugiu, após o fim da guerra, para a Argentina e depois se mudou para o Paraguai. Mais tarde, procurou refúgio no Brasil, temendo ter o mesmo destino de Adolf Eichmann, o “arquiteto do Holocausto”, capturado em 1960 na Argentina pelo Mossad, o serviço secreto israelense. Eichmann foi julgado e executado por enforcamento dois anos depois.

O fato já era conhecido, mas o livro apresenta detalhes inéditos desse período, a partir de conversas com membros da comunidade alemã em São Paulo, sobre como Mengele conseguiu abrigo no Brasil por tanto tempo e com testemunhas do momento em que o médico morreu afogado – em fevereiro de 1979, aos 67 anos.

Uma dessas testemunhas era mãe de um aluno da escola alemã onde a autora estudou na infância. Nessa mesma escola, a professora húngara Liselotte Bossert foi presa após a polícia ter descoberto que ela e o marido, Wolfram Bossert, deram abrigo a Mengele por um período.

Para Anton, “seria ingênuo imaginar que a comunidade alemã em São Paulo estava totalmente alheia aos nazistas”. Indício disso seria o fato de Franz Stangl, comandante dos campos de extermínio de Treblinka e Sobibor, ter trabalhado abertamente, usando o próprio nome, na Volkswagen – cujo passado também vem sendo questionado.

Ainda assim, histórias de nazistas eram “casos isolados” na comunidade alemã em São Paulo, e muitos alemães nem sabiam quem Mengele era até sua história ser noticiada na imprensa, na década de 1980.

Mengele por ele mesmo: as cartas “esquecidas” do médico nazista

Certa vez, o único filho de Josef Mengele, Rolf, concedeu uma entrevista à revista alemã Bunte, na qual disse que o pai teve uma vida miserável no Brasil.

O livro Baviera tropical expõe a vida íntima e privada de Mengele a partir de 80 cartas apreendidas pela Polícia Federal em 1985, que dão um panorama da vida do médico nazista no Brasil, o que, segundo a autora, faz cair por terra o discurso da família.

As cartas indicam que Mengele teve uma vida cheia de regalias durante o tempo em que viveu no país e que nunca se mostrou arrependido dos crimes que cometeu.

“Sim, ele reclamava muito da vida. Por outro lado, há também relatos de que ia à cachoeira, à praia, ao sítio. Quando estava em casa, saía para passear com os cachorros, colhia amoras, passeava pela cidade. Ia à livraria alemã, comia doces alemães. Tinha acesso à literatura alemã, escrevia cartas o tempo todo”, afirma Anton. “Então, definitivamente não acho que ele teve uma vida miserável no Brasil.”

Longe dos olhos, não do coração: sobrevivente fugiu de Mengele em São Paulo

“Ela dizia que nunca se esqueceu dos olhos dele”, afirmou o paulistano Marcelo Gewertz, 29, quando indagado sobre as lembranças que a avó, a polonesa Cecília Gewertz, tinha do alemão Josef Mengele, conhecido como “anjo da morte”. No dia 27 de janeiro, Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, completaram-se 80 anos desde que Cecília foi libertada de Auschwitz-Birkenau, no sul da Polônia, por onde passou cerca de 1,3 milhão de pessoas, em sua maioria judeus. 

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Cecília passou por cinco campos de concentração e foi vítima dos experimentos de Mengele. A experiência era compartilhada abertamente com os netos. Em 2014, eles gravaram um depoimento de 45 minutos da avó sobre os horrores sofridos. A partir do material, criaram o projeto “Sobre viver o Holocausto”, que busca perpetuar a memória das vítimas.

Entre os vários experimentos a que foi submetida, ela e mais três judias – uma grega, uma francesa e uma húngara – foram encaminhadas a um barracão e, nuas, tiveram que revezar entre ficar por vários minutos em banheiras com água fervente e, depois, congelante. “Enquanto minha avó gritava, Mengele apontava uma arma para ela e dizia: ‘Coloca essa cabeça para dentro, senão eu te mato!’”, afirma Marcelo Gewertz, que diz que ela nunca esqueceria seus gritos nem seus olhos.

O neto conta que, mesmo depois do término da guerra e da fuga para o Brasil, Cecília ainda tinha medo de Mengele e o temor a acompanhou até o fim da vida. Prova disso está em um dos trechos do livro, concebido após uma conversa entre a sobrevivente e a autora, em julho de 2017, sobre o dia em que a mulher se viu diante da possibilidade de cruzar com o médico nazista em São Paulo.

Cecília morava na capital paulista e passava temporadas no sítio de uma amiga em Serra Negra. Certo dia, um menino que morava na região correu até ela e disse que Mengele estava no município. Não se sabe a origem da informação, visto que apenas a família Stammer, que dava abrigo ao nazista, conhecia a verdadeira identidade dele. A sobrevivente passou mal e foi embora, nunca mais voltando à cidade.

“Cecília teve uma reação irracional, típica de quem carrega algum trauma”, diz Anton. “Em vez de denunciar Mengele às autoridades, ficou apavorada e fugiu. Pensou: ‘Ele está aqui para matar os judeus’. Perdeu uma oportunidade incrível. Não sei se as autoridades a levariam a sério, porque havia muitas pistas falsas na época, mas ela poderia tê-lo denunciado.”

Cecília morreu em junho de 2018, aos 96 anos, em São Paulo, vítima de falência múltipla de órgãos. Ela nunca reencontrou Mengele.

Antissemitismo: perseguição vai além do século passado

Ainda que tenha experimentado alguns golpes de sorte pelo caminho, alguns fatores ajudam a explicar o fato de Josef Mengele ter vivido tantos anos no Brasil sem ser descoberto. Um deles é a sólida rede de apoio que encontrou, que vai além dos imigrantes vindos da Alemanha e outros países europeus. Ainda hoje, aliás, há centenas de grupos neonazistas espalhados pelo Brasil, mas a autora diz ser difícil estabelecer uma conexão entre os simpatizantes do nazismo da década de 1960 e os atuais.

Segundo pesquisa da antropóloga especializada em neonazismo no Brasil Adriana Dias, havia, no início de 2022, mais de 530 grupos neonazistas no país.

Para a sobrevivente do Holocausto Marika Gidali, de 88 anos, a comunidade judaica sempre esteve ameaçada, mas agora parece que a situação está pior. A húngara, que reconstruiu a vida em São Paulo a partir da dança e fundou o estúdio Ballet Stagium, chama atenção para a importância de perpetuar a memória dos sobreviventes.

“Como é possível alguém negar ou relativizar um momento histórico? Será que acham que estamos todos mentindo?”, questiona. “É a mesma coisa que dizer que a Inquisição ou que a escravidão não existiram. Não se pode apagar a história.”

Para Marcelo Gewertz, perpetuar a memória das vítimas do Holocausto é o melhor jeito de combater o antissemitismo. Ele ressalta que a terceira geração, netos de sobreviventes, tem um papel decisivo nesse sentido: “Daqui a pouco, os sobreviventes não estarão mais aqui para contar as histórias deles. Então, penso que cada um tem a responsabilidade de perpetuar essa memória e não deixar que ela caia no esquecimento”.

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