Venda casada e crédito rural: como é a perspectiva da jurisprudência do STJ

A controvérsia sobre a prática de venda casada em operações de crédito tem ocupado destaque no âmbito judicial, principalmente nos casos em que produtores rurais, em situação de alto endividamento, recorrem ao Poder Judiciário para impugnar a cobrança de determinados débitos relacionados à concessão de crédito rural.

O argumento é que eles decorrem de obrigações acessórias impostas de forma abusiva. Nesses casos, é comum fundamentarem-se no artigo 39, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que proíbe o condicionamento da contratação de um serviço à aquisição de outro, para pleitear a inexigibilidade de valores cobrados em razão da aquisição de produtos financeiros como seguros, títulos de capitalização, consórcios e planos de previdência privada, sob a alegação de que a liberação do crédito foi indevidamente vinculada à contratação desses produtos junto ao agente financiador.

O objetivo dessas ações é obter o reconhecimento judicial do abuso das práticas adotadas pela instituição financeira, argumentando que o produtor rural foi coagido ou constrangido a adquirir produtos financeiros que não eram de seu interesse, como condição indispensável para obter o crédito necessário à atividade.

Além de afastar a cobrança pela aquisição desses acessórios, alguns casos chegam a contar com pedido de indenização por danos materiais, sob o argumento de que as práticas impuseram prejuízos financeiros e comprometeram a continuidade da atividade rural.

No entanto, a invocação do CDC como fundamento para afastar cobranças encontra obstáculos relevantes no âmbito judicial, sobretudo devido à inaplicabilidade automática dessa lei à boa parte das operações de crédito rural.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem reiterado que a relação jurídica entre o produtor rural e a instituição financeira não caracteriza, por si só, uma relação de consumo.

Trata-se de entendimento baseado na teoria finalista do consumidor, segundo a qual somente o destinatário final do produto ou serviço é considerado consumidor para a aplicação do CDC. Desse modo, como o crédito rural é destinado ao fomento da atividade produtiva, utilizado como meio para o seu desenvolvimento, ele não se enquadra, em regra, no conceito de relação de consumo previsto na legislação.

Ainda que se admita o enquadramento do consumidor por meio de uma forma mitigada (ou aprofundada) da teoria que permite a aplicação do CDC, mesmo no curso da atividade empresarial com base na vulnerabilidade do adquirente, esse reconhecimento não ocorre de forma presumida.

Isso significa que, para que essa lei seja aplicável, é necessário demonstrar que o produtor rural possui uma fragilidade técnica, econômica ou informacional que o coloca em posição de desvantagem na relação contratual. Sem essa comprovação, prevalece o entendimento de que se trata de uma relação jurídica entre partes em condição de igualdade, não sujeita às normas da legislação.

Mesmo em casos em que o tomador do crédito é um pequeno produtor ou pessoa física, é importante adotar uma abordagem cautelosa na aplicação do CDC. Com base na jurisprudência do STJ, entende-se que, embora existam situações em que a vulnerabilidade possa ser reconhecida, essa análise deve ser feita caso a caso, com base em provas concretas.

A limitação aos agentes sujeitos à disciplina consumerista representa uma barreira relevante para a tese da venda casada, o que pode trazer dificuldades ao sucesso de ações que buscam coibir práticas supostamente abusivas com base exclusiva no CDC.

Assim, é possível afirmar que a estratégia mais eficaz para determinar a eventual abusividade das práticas adotadas pelo agente financiador na concessão de crédito rural pode não ser a simples invocação do CDC.

Considerando as restrições jurisprudenciais, a análise deve se concentrar nas normas específicas ao crédito rural, tais como a Lei nº 4.829/65, o Decreto-Lei nº 167/67 e o Manual de Crédito Rural (MCR), bem como em princípios contratuais como a boa-fé objetiva.

Além disso, a jurisprudência também tem valorizado a transparência nas relações contratuais, impondo aos bancos o dever de informar adequadamente os mutuários sobre as condições dos contratos e a natureza facultativa de determinados produtos financeiros.

Outro aspecto relevante é que, mesmo quando o CDC não é aplicável, o Código Civil oferece instrumentos para o controle de eventuais condições abusivas, com base nos princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva.

O artigo 421 do Código Civil, por exemplo, determina que a liberdade contratual deve ser exercida em consonância com a função social do contrato, o que pode ser utilizado para contestar disposições que imponham obrigações desproporcionais ou contrárias ao equilíbrio da relação jurídica.

Por mais que a tentativa de aplicação do CDC às operações de crédito rural tenha sido uma estratégia recorrente no Judiciário, sua eficácia é limitada diante da orientação consolidada do STJ.

Exige-se a comprovação da vulnerabilidade do produtor para aplicar as normas consumeristas, o que impõe a necessidade de adoção de uma postura mais ampla, que considere tanto a legislação específica do crédito rural quanto os princípios gerais do direito contratual.

Embora a alegação de venda casada possa ser uma tese juridicamente interessante, não se mostra a mais adequada para fundamentar as demandas judiciais relacionadas ao crédito rural de forma genérica. Para o STJ, esse enquadramento depende de uma análise individualizada de cada caso, com a demonstração concreta da vulnerabilidade do mutuário e da abusividade da prática imposta.

Renato Buranello é sócio do escritório VBSO Advogados e presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Agronegócio (IBDA).

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