Kierkegaard lança luzes sobre o conto “William Wilson”, de Poe

Helder D’Araújo

Por que ler o conto “William Wilson”, do escritor americano Edgar Allan Poe (1800-1849), sob a tríade proposta pelo filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855) e não pela abordagem tripartite da psicanálise, isto é, o ego, superego e o id?

Toda leitura é um esforço de interpretação. Esta é um esforço teológico-filosófico, digamos. Não é possível que Poe tenha pensado em Kierkegaard quando escrevia seu, talvez, melhor conto. Pensava em Freud? Claro que não, pois Sigmund nasceu sete anos depois de sua morte.

O conto de Poe tem elementos de sobra que pode muito bem caber uma leitura a partir do existencialismo kierkegaardiano. Há muitos sinais no conto em que o herói se vê diante de um determinismo austero. Termos como “herdar”, “raça” e até “destino” confirmam essa espécie de determinismo calvinista.

Não está explícito questões de fé, por exemplo. Contudo, William Wilson vê-se encurralado e sacrifica (termo caro a Kierkegaard) o seu adversário — que é a sua imagem e semelhança. A figura do duplo.

O narrador começa sua estória informando que caiu (queda remete a pecado) no mais baixo nível e cometeu um ato hediondo. Talvez atos que remetam ao primeiro homicídio bíblico como também o pior de todos os atos, o deicídio. Mas, antes do fatídico desfecho, o herói faz um exercício de digressão da sua sina.

Soren Kierkegaard: filósofo dinamarquês | Foto: Reprodução

Os modos de existir do filósofo Kierkegaard são: o estético, o ético e o religioso. No primeiro estágio o existente não tem preocupação com nenhuma regra. Vive-se doidamente. Nosso herói não tinha freios. Informa ao leitor que seus pais não o dominavam. Quando vive por um período de cinco anos na escola, salvo o freio que William Wilson impõe aos seus caprichos, ele comanda a todos. Quando não é W.W. que o corrige, a religião apresenta-se como Iavé no Velho Testamento na pessoa do professor que duplo (esse um binômio onipresente no texto) ora ministra a mão esquerda (punições físicas) de Deus com disciplina rigorosa aos alunos ora transfigurado pelo sermão comporta-se como anjo.

W.W. por todo o conto seria uma espécie de consciência do narrador. Nesse sentido aparece o segundo estado de existência kierkegaardiano, o ético.

Intervém essa consciência personificada diretamente nos negócios do herói errante desde a infância até a vida adulta num baile carnavalesco.

A vida indomável, isto é, a estética do narrador, não flui livremente. W.W. intervém na escola, na universidade e na fuga do judeu errante (Paris, Rússia, Roma…) não deixando espaço para a liberdade de nosso herói.

Na grandiosa obra de Herman Melville, “Moby Dick”, temos um início intrigante: “Chamai-me Ismael”. O narrador de Poe inicia sua odisseia assim: “Permita-me apresentar, por ora, como W.W.” Por quê? Porque desde cedo uma espécie de mau karma o atinge. Surge em sua vida o outro com nome parecido e semelhante em tudo: voz, trejeitos, roupas, fisionomia. Esse caso curioso escandaliza o herói.

Vemos aí outro fator, além da depravação, a saber, a predestinação, que lembra a crença religiosa no fatalismo. Muda-se o cenário várias vezes menos o seu perseguidor. Como um mau karma. W.W. é sua consciência externa e tenta aconselhar a contragosto nosso herói.

A angústia (outro termo kierkegaardiano usado por Heidegger e Sartre) do herói o persegue como sombra. Essa sensação é exposta na confissão desde quando os dois encontram-se na escola. E fora, como um Adão amaldiçoado e expulso do paraíso, só se acentua.

O episódio da revelação da fisionomia de W.W. aterroriza o narrador. Esse terror há de repetir-se no caso de uma festa na universidade e quando é desmascarado numa roda de jogos em que engana seu adversário. Após, W.W. aparece inúmeras vezes, mas sem revelar o rosto.

A dualidade e a dialética (eu versus outro; ética versus estética) dominam o conto. Contudo, quando nosso herói dá seu salto de fé? Quando finalmente ele passa de fase? Quando ele finalmente pensa em confrontar seu outro eu.

Kierkegaard não entendia-se filósofo, e sim um pensador da religião cristã. Um tema caro ao cristianismo é o embate que o novo homem tem com seu antigo eu. Mora dentro de nosso narrador uma duplicidade. Duplicidade essa bem retratada, segundo Nietzsche, pelo fundador do cristianismo, Paulo.

Diz o apóstolo: “O quero fazer não faço e o que não devo fazer isso faço”. O embate do velho homem versus o novo homem. Nas “Confissões” de um dos maiores pensadores do cristianismo, Agostinho, há um questionamento intrigante: “Senhor, eu sou eu?”. Wilson tem que acertar as contas com essa sombra (conforme Jung) que está viva e o assombra.

Num último encontro, seu homem estético, Don Juan, está à solta. Wilson procura ardentemente a mulher do anfitrião. Pousa a mão esquerda do homem ético sobre seus ombros. É a hora em que Abraão pega pela mão seu semelhante para sacrificar. Mesmo evitando no início de nossa resenha a psicanálise, me traio. Retomo a ela porém pelo pensador que não se esquivou do homo religiosus, Jung. Evito, por ora, o tema do duplo no conto. Penso em outro princípio em Jung que pode dialogar com Kierkegaard. Isto é, o sacrifício. Este refere-se a uma mudança de consciência rumo à maturidade.

Wilson leva seu duplo para um quarto e com porta trancada sacrifica seu oponente. Porém um espelho revela-os jungidos e a voz do sacrificado mortalmente ferido informa que Wilson não matou somente sua imago, mas a si. Wilson se auto imola. Isso é terrífico (o tremendíssimo) conforme o narrador inicia sua estória. O salto de fé requer a angústia. Kierkegaard tem um livro onde imagina várias cenas de Abraão num solilóquio masoquista. Sabemos que o fundador dos três monoteísmos não sacrifica o filho apesar de estar pronto para fazê-lo. Não aparece o anjo em socorro de W.W.

Um grande expoente do pensamento cristão, Santo Agostinho angustia-se antes de sepultar seu velho homem devasso. Há uma representação famosa sua em que demonstra seu arrependimento em retiro num jardim. É a angústia que corrói nosso narrador como um condenado no ventre de Fálaris.

Existir é náusea, diz Sartre. Existir para Kierkegaard é angustiar-se e William Wilson gira, como Íxion, a roda de fogo como a um condenado. A suspensão dá-se no salto feito quando perdura o seu adversário, a saber, a si próprio.

Em nossa literatura temos um conto que trata bem essa dualidade humana. Machado de Assis retrata-a em “O Espelho”. Apesar do espelho refletir somente o Eu externo do alferes fica a reflexão para a deformidade que a imagem exterior faz na interna. O tema do Narrador em terceira pessoa, Jacobina, é que temos duas almas. que sempre sobressai deixando a outra disforme.

Não penso que Poe faça seus contos à la C.S. Lewis. O salto de fé de Kierkegaard requeria coragem. Coragem como a de Abraão a levantar uma adaga para imolar o filho. Wilson realiza o ato final. Mas é informado que aniquila também a si. Não seria o auto sacrifício o ponto alto de nosso herói? O angustiar-se pelo episódio ao ponto de confessar é tema recorrente na literatura, veja “Confissões” de Agostinho e de Teresa D’Ávila. Entendem seus desregramentos pregressos como crimes. Paulo de Tarso vê-se o preso de Deus uma vez que perseguiu e assassinou cristãos. Wilson mata a própria alma, contudo, recorre ao último recurso dos condenados, a confissão. Claro, mais comparado aos confessores danados no inferno de Dante.

Helder D’Araújo é escritor.

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