Resenha do livro “Pergunte a Shakespeare: as respostas do dramaturgo mais famoso do mundo para os grandes desafios da vida cotidiana” (Leya, 296 páginas, tradução de Silvana Cobucci), de Cesare Catà.
Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
Como o pai morre em condições duvidosas, o filho desconfia que seu progenitor foi assassinado. Essa desconfiança aumenta, consideravelmente, quando a mãe se casa com o tio, menos de três meses após o falecimento do marido. É num ambiente como esse, repleto de sentimentos negativos, que o herdeiro legítimo do trono, um príncipe da Dinamarca, é o protagonista de uma peça que, há mais de 400 anos, lota teatros pelo mundo afora: Hamlet.
Por que um personagem como esse se mantém com o mesmo vigor durante tanto tempo? A resposta é uma só: devido ao talento de um extraordinário escritor que soube, meticulosamente, construir a psicologia humana, dissecando as profundezas da alma de seu personagem. O resultado dessa construção literária chama-se ser humano. Por essa razão, o príncipe da Dinamarca carrega, dentro de si, as marcas de um gênio que soube, como ninguém, construir literariamente o ser humano, para tanto, indo às profundezas dos seu subterrâneo.

A aparente loucura de Hamlet
A sociedade julga superficialmente os indivíduos dentro de parâmetros preestabelecidos. Afinal, alguém disse que, “Narciso acha feio o que não é espelho”. Hamlet destoa deste mundo porque ele foi capaz de se comunicar com o fantasma de seu pai e, a partir dele, agir fora dos padrões convencionais da época. Foi tachado de louco, embora a loucura dele simplesmente não tenha existido. Motivo: o fantasma do seu pai contou-lhe tudo o que acontecera. O herdeiro legítimo do reino da Dinamarca era capaz de transitar entre os dois mundos que integram o universo da peça: o dos mortais e o dos fantasmas. Afinal, quem de nós, simples mortais, é capaz de comunicar-se com os fantasmas do outro mundo e extrair dessas ações, perfeitamente coerentes com uma realidade do personagem?
Perante o fato, vejamos o que tem a nos dizer o autor sobre esse assunto. Com a palavra o doutor Cesare Catà: “se você já percebeu o absurdo da vida, e desde aquele momento se sentiu diferente dos outros, exilado no mundo, o personagem de Hamlet fala para você, para sua falta de esperança – que muitos chamam de estranheza, depressão, desvio, loucura”; assim relata o autor para, em seguida, concluir: “é simplesmente o seu jeito de ser, o jeito hamletiano de estar no mundo”. O que torna louco, aos olhos alheios, o modo de agir de Hamlet vincula-se à capacidade de ele se comunicar com os mortos e lá conversar com o fantasma paterno. Quem o chama de louco não transita pelo mundo dos fantasmas. Quem o chama de louco relaciona o modo de agir do príncipe herdeiro do trono da Dinamarca considerando tão somente o mundo dos mortais.

Hamlet e a sede de vingança
A frase completa e mundialmente conhecida é: “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha tua vã filosofia”. Só o príncipe Hamlet, legítimo herdeiro do reino da Dinamarca, poderia dizer isso, pois só ele era capaz de conhecer a verdade que lhe falava o fantasma paterno nos momentos em que ele transitava pelo mundo dos mortos.
Hamlet é uma pessoa incompreendida. Considerando o universo de personagens que gira em torno dele, Horácio é o personagem que o compreende, é a pessoa em quem ele mais confia. Grau máximo de confiança.
Já o grau máximo de desconfiança Hamlet atribui à sua própria mãe, Gertrudes. Portanto, é oportuno que o leitor entenda a importância dos principais personagens que integram essa obra-prima da literatura mundial.

Cláudio: Rei da Dinamarca. Tio de Hamlet. É um personagem astuto e ambicioso que toma o trono ao assassinar o próprio irmão. Tal como à mãe, Hamlet tem por ele completa aversão, grau máximo de desconfiança.
Polônio: conselheiro astuto e um tanto quanto intrometido. Passa informações de Hamlet para Claúdio. O modo de agir de Polônio contribui ao aumento da desconfiança de Hamlet.
Ofélia: filha de Polônio, é uma mulher dividida entre a lealdade ao pai e o amor de Hamlet. A morte do pai e o fato de ela ter sido abandonada por Hamlet levam-na à loucura e, posteriormente, à morte. Grau médio de confiança.
Laertes: filho de Polônio e irmão de Ofélia. Grau máximo de desconfiança.
Fortinbras: Príncipe da Noruega, cujo pai foi assassinado pelo pai de Hamlet. Ele reclama as terras perdidas para a Dinamarca. Grau máximo de desconfiança.
O Fantasma: o fantasma do Rei da Dinamarca aparece várias vezes ao longo da peça, revelando a verdade sobre o seu assassinato. Grau máximo de confiança.
Rosencrantz e Guildenstern: espiões do tio de Hamlet. Grau máximo de desconfiança.

Hamlet carrega consigo o pedido feito a ele pelo fantasma do pai: vingue-se. A sede de vingança resultou na morte de nove pessoas, com a maioria de seus inimigos sendo assassinados. Em se tratando do reino pacífico da Dinamarca, esse acontecimento foi uma tragédia. Veja quem são eles: Polônio, Hamlet matou-o com as próprias mãos; por ordem de Hamlet, seus antigos inimigos, Rosencrantz e Guildenstern, espiões de seu tio, foram mortos; a bela Ofélia teve um trágico destino: suicidou-se nas águas de um rio, o fato de Hamlet a ter abandonado e apunhalado seu pai contribuiu para o ato final dessa personagem; Gertrudes foi envenenada por engano (morre acidentalmente ao beber vinho envenenado); Claúdio, além de envenenado, foi também apunhalado; Laertes, irmão de Ofélia, morre ao lutar com Hamlet. O único que sobreviveu à matança foi aquele que o Príncipe da Dinamarca mais confiava: Horácio.
Hamlet pode ajudar no seu dia a dia
Creio que seja oportuno transcrever a fala do autor quando ele define o modo hamletiano de ser. Suas explicações serão muito úteis para uma correta avaliação da importância de Hamlet no dia a dia das pessoas. Dessa forma, vamos à fala do doutor Cesare Catà: “Se você já percebeu o absurdo da vida, e desde aquele momento se sentiu diferente dos outros, exilado no mundo, o personagem de Hamlet fala para você, para sua falta de esperança – que muitos chamam de estranheza, depressão, desvio, loucura, mas é simplesmente o seu jeito de ser: é o jeito hamletiano de estar no mundo”.
Esse jeito hamletiano de ser, típico da modernidade que produz certo isolamento dos indivíduos, adapta-se ao universo de cada um de nós. Afinal, quem de nós não tem seus fantasmas shakespearianos para enfrentar? Quem não vence esses fantasmas passa a vida inteira lidando com os estereótipos daqueles que nos julgam, tal como julgaram “a loucura” de Hamlet.

Do ponto de vista pessoal, Hamlet deu-me visibilidade aos meus problemas para enfrentar a “louca da casa” chamada depressão. Nesses momentos de dor da alma, conhecer Hamlet deu-me força para vencer esse mal da modernidade. Com a ajuda de Hamlet neste mundo, e de Deus todo-poderoso no outro mundo, a turbulência transformou-se na paz de espírito. Um dileto amigo dos tempos de faculdade, que me conhece há quase meio século, perguntou-me se hoje sou mais feliz. Não tive dúvidas em responder: sim, sou muito mais feliz.
Como disse a saudosa Barbara Heliodora, mais gabaritada intérprete de Shakespeare do Brasil, quando lhe perguntaram: “Você já fez psicanálise?”; ela prontamente respondeu”: “Não. Porque vou recorrer a Freud se ele foi beber na sabedoria de Shakespeare para estruturar a psicanálise. Minha filha, quem conhece a obra do maior escritor do mundo, não precisa de mais nada”. Sábias palavras.
Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, mestre em energia pela Unicamp. É autor de oito livros relacionados aos seguintes temas: energia, política, desenvolvimento regional e economia. É colaborador do Jornal Opção.
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